(nos primeiros tempos do meu blog, publiquei uma historia mais longa, com o subtitulo "sinceridades inveridicas sobre minha aldeia", da qual reproduzo um trecho aqui; este trecho fala sobre os tipos de rua de Antonina, em especial Maneco Cego, verdadeiro terror de minha infância)
Nas ruas é
que nos reuníamos para conversar: emitíamos juízos em longos monólogos,
incompreensíveis uns para os outros. Nossa fala era primitiva e pouco sóbria -
gritávamos, falávamos coisas sem nexo, nos injuriávamos mutuamente. A
exageração e o teatral eram constantes, possuindo mesmo até graça e melodia, se
graça e melodia então houvessem. Ríamos muito, de praticamente tudo, sem mesmo
esperar motivos. Volta e meia, porém, cessava o riso para seguir-se o pranto,
quando pranteávamos um passado que ainda não fora inventado. Das janelas das
casas, olhos e ouvidos invisíveis nos observavam e escutavam, rindo ou chorando
de nossas frouxas histórias.
Alguns de nós porém, deixavam-se ficar mais
tempo nas ruas, agarrando suas histórias com uma tenacidade quase comovente.
Estes iam falando, falando e falando, e suas frases iam ficando cada vez menos
coerentes. Quando isso acontecia, mais e mais faziam sentido. Dali a pouco
tempo, sinais de uma loucura doce eram visíveis, e estes profetas ficavam então
vagando pelas ruas e resmungando suas inúteis profecias. Tamanha era sua força
que uma estranha lucidez os envolvia, e mesmo as pessoas que riam ou choravam
dos ditos do louco o temiam como a uma praga.
Entre eles
havia Maneco Cego, o profeta trôpego a cantar com voz de Vicente Celestino
velhas canções ainda não compostas. Maneco Cego (Ou Maneco Pato, nunca soubemos
ao certo) era um profeta itinerante, sazonal. Passava grandes temporadas entre
nós, e, depois, desaparecia outros tempos. Semi-cego, dizia ser nosso rouxinol,
narrando um fictício programa de rádio pelas ruas, em que era o locutor, o
narrador e o cantor. Bem humorado, seu programa poderia durar o dia todo, caminhando
alegre pelas ruas todas da cidade. Quando Maneco estava de mau humor,
aprendíamos novos significados para palavrões até então singelos de tão
cabeludos.
Tinha as
pernas duras e andava com dificuldade, como um grande boneco, um grande pássaro
desastrado. Para atravessar a rua, por exemplo, Maneco era metódico. Chegava-se
até à beira da calçada e esticava a perna, em movimentos bem duros.
Freqüentemente se desequilibrava, e desandava numa pequena corrida, como se
praticasse marcha atlética, indo se aprumar lá pelo meio da rua,
desengonçadamente. Quando não era atropelado ou xingado por algum motorista,
dali Maneco prosseguia sua marcha trôpega no rumo da calçada oposta. Esticava a
perna, subia o meio-fio e lá ia se aprumar novamente contra a parede das casas.
De sua
cegueira tudo se dizia, e havia mesmo quem duvidasse ou quem o tivesse visto
lendo jornal deitado lá no Mercado, ou então olhando atentamente para uma
cédula nova que tivesse acabado de ganhar. Tentávamos assustá-lo com berros e
gritos à queima-roupa, provocando cenas patéticas. Os moleques saiam
rapidamente da fatal distância de seu abraço, com alguns croques resvalando
pela cabeça. Maneco arrumava seu paletó
em frangalhos, sacudia o corpanzil desajeitado e, desfiando seus habituais
xingamentos, seguia andando em direção à porta do Cinema. Pelo meio da manhã,
os urubus também já haviam saído do mercado e voavam em círculos sobre a
cidade, cada vez mais alto, aproveitando a corrente de ar ascendente. Depois de
comer alguma coisa, qualquer coisa, Maneco dormia. Encostava em qualquer parede
de casa, muro, ou debaixo de um marquise e dormia, sossegado. A cidade com seus
olhos e janelas atentos viam tudo aquilo e balançavam a cabeça, tristemente. O
sol já ia baixo, meio da tarde, Maneco seguia novamente em direção ao Mercado
fazer qualquer coisa, ou mesmo nada. Feliz, começava a cantar alto, e era
sempre tão bonito e tão triste, que nos esquecíamos de tudo, não tínhamos lar
nem amigos, tudo havia terminado. As músicas de Maneco tinham sempre este ar
trágico, de abandono e solidão, tão ao nosso jeito de estar no mundo,
acariciando nosso vazio de alma. Nestas horas, nos perguntávamos quem havia
sido aquele homem de triste figura, parecendo um urubu descarnado. Um pobre
coitado? Um milionário que largou tudo e foi viver ao relento por causa de um
amor fracassado? Mas tudo isso era de um romantismo tão pobre e rasteiro que
não durava sequer uma sessão inteira de O Ébrio. Os urubus iriam embora para
seus ninhos, lá no morro, e a noite encontraria Maneco deitado em algum canto,
o paletó suarento, olhando ao redor com seus olhos pequenos, o nariz adunco de
ave benévola.
Maneco
sumia por uns tempos, talvez estivesse longe, por onde andaria então? Pegava o
trem e sumia. Onde ia durante estes sumiços? Voltava invariavelmente alegre,
murmurando o fim dos tempos. Sua voz potente tomava tons de oráculo, e então
ríamos, mesmo sabendo de seu poder. Tentávamos então rir mais alto que sua voz,
para que se calasse. Mas era um cabo de guerra desigual, e seu dedo em riste
nos prometia infortúnios e desgraças. Alguns perguntavam: por que tal profeta
preferia viver ali, sempre a beira do apocalipse, sem qualquer conforto ou
absolvição? Nós não tínhamos saídas, estávamos presos dentro de nós mesmos, de
nossa angústia, de nosso vazio. Mas Maneco não se importava com isso. Não se
importava com nada. E prosseguia entre nós, inabalável.
Não
obstante, tínhamos a certeza de estar no melhor dos mundos. Enganávamos a nós
mesmos de maneira cruel e impiedosa, e
ríamos de nossas próprias frouxas histórias. Pior, acreditávamos nelas. A beira
do apocalipse, sonhávamos com o mundo de nossos avós. Viriam navios, viriam
indústrias, viriam turistas. Grandes festas, grandes bailes, Corsos e desfiles,
toda uma época de ouro, toda uma época mágica estava voltando, a qualquer desavisado
momento. Maneco, ao contrário, nos falava de estranhas tragédias, de pragas e
anjos com trombetas, descendo a serra pela estrada velha, gritando e apitando
como verdadeiros demônios. Era os nossos demônios, que finalmente tinham nos
encontrado, ele explicava. Uma maré de sete anos invadiria as casas, dizia,
submergindo a cidade no lodo. Depois de anunciar nosso fim, Maneco esquecia
tudo e voltava a transmitir sua rádio, a ser importunado pelos meninos e
amaldiçoado pelas donas de casa. Se sumisse, dali a algum tempo apareceria
novamente, com uma regularidade que nos convencia de que existia o tempo, a
sucessão normal das coisas. Mas, mais uma vez, Maneco estava nos enganando com
suas idas e vindas. Nos dias de chuva, ficava sob qualquer marquise, quieto,
rodeado por seus haveres, parecendo uma grande ave em seu ninho.
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