sábado, 22 de abril de 2017

SOBRE GAMBÁS E SABIÁS

Flagrante do feroz gambazinho rugindo por entre as flores...
Aqui em casa temos um longo histórico de convivência com gambás e sabiás.
Os sabiás estão aqui quase todos os dias, faça chuva ou faça sol. Quando cortamos a grama, aumenta a quantidade dos bichos. Fica um monte deles na grama, para lá e pra cá. Gosto de ver os pulinhos que eles dão, num caminhar desajeitado tão típico dos tordos. Sua luta diária contra os vermes e as minhocas do gramado é quase épica, é um destes terríveis espetáculos da natureza. Ver o pássaro gigante e predador lutando contra o frágil e indefeso anelídeo é um duelo terrivelmente cruel e desigual, ocorrendo bem ali na nossa frente. Não deveria enternecer nossos corações, mas enternece. Não torcemos (eu não torço) para a minhoca. Sempre acho lindo o sabiá olhar para os lados, a minhoca (ou parte dela) retorcendo-se no seu bico. Num instante depois, o pássaro sai logo voando. Os filhotes precisam comer.
Os gambás são noturnos, e vivem sempre aprontando alguma. A lista é grande. Certa vez um gambá comeu os caquis que estavam no secador de frutas. Uns caquis belíssimos, vermelhinhos e docinhos. Não os culpo, eram realmente muito apetitosos e suculentos. Outra vez, remexeram no lixo, e fizeram uma grande duma bagunça na área de serviço. Outra vez ainda, Maria José se deparou com um destes gambás na cozinha e tentou espanta-lo de maneira gentil. Ele não se deu por achado, e ela então o cutucou com uma vassoura. Ele rosnou e mostrou os dentes. Vendo que o bichinho ia resistir, ela fez uso da mais letal das armas: o esguicho. Com uma potentíssima mangueira esguichando no seu focinho, o marsupial não teve mais argumentos e bateu em retirada. A cozinha ficou parecendo um território conflagrado, mas eles nunca mais se atreveram a entrar aqui dentro.
No máximo, andavam pelo quintal, num horário entre as dez e onze da noite. Entravam e saiam quase todos os dias, correndo pelo gramado. As vezes em dois, as vezes um. Até que estes dias eles reapareceram: roubaram uma manga e a deixaram semimordida no gramando. Era um sinal de sua presença. Outro dia, escutei um guincho e vimos dois gambás passeando pela fiação de luz em frente de casa. A luz dos postes refletindo por trás sobre os bichos lhes conferiam uma aura, como que recortados da escuridão. Ficamos um bom tempo apreciando os bichos a caminhar por entre as altas voltagens dos cabos elétricos da rua, vagarosamente, como se quisessem nos mostrar suas habilidades de malabaristas.
Ontem à noite recebemos a visita de um gamba ainda filhote. Sem se incomodar com nossa presença ficou por ali, mordiscando coisas no escuro. Quando fui ver quem era, ele fugiu. Fugiu para uma arvore cheia de flores. Quando apontei para ele minha cruel máquina fotográfica, ele soltou um rugido tão terrível que me fez medo. Parecia o Flor, do Bambi, rugindo por entre as flores do jardim. Foi engraçado e terno, que ri e deixei o bicho em paz.  Ele passou o resto da noite saracoteando por ali procurando sua comida.
Hoje de manhã, um sabiá estava na calçada, andando desengonçado por entre os matinhos que surgem nas frestas. Com um golpe certeiro, apanhou uma lagarta, a ficou ali a lutar contra ela. Fiquei um tempo torcendo por ele. Quando a lagarta não se mexia mais, ele a pegou no bico, deu uma virada de cabeça bem de passarinho, e se foi.
Quando tudo parece tão terrível, nada como cuidar do próprio jardim, como pedia o Cândido de Voltaire. Voltar ao simples. Os gambás e sabiás e suas urgências me parecem hoje um contraponto bem exato para a correria em que a gente se mete assim, sem-querer-querendo. O feroz gambá rugindo por entre as flores, entre assustado e assustador, e o pequeno sabiá catando comida para a prole somos nós.

(PS - vi que, entre feliz e assustado, esta é a 300ª postagem neste blog; puxa! um marco!  obrigado a todos pela paciente leitura e critica destas maltraçadas linhas....)