Alguém já viu uma cobra-vidro? Segundo os biólogos, apesar
do nome, trata-se de um lagarto. É um réptil carnívoro, que se alimenta de
lagartas, lesmas e larvas. De hábitos diurnos, ela pode ser vista em campos e
charcos. Os machos apresentam colorações esverdeadas e azuladas, enquanto as fêmeas
possuem um risco localizado próximo ao dorso. Como a maioria dos lagartos, a
cobra-vidro pode perder partes do corpo, que se regeneram. Assim, muitas vezes
ela pode escapar dos predadores.
Certa vez, há muito tempo atrás, de manhã cedo, eu estava indo para o colégio em Antonina,
minha cidade natal. Na esquina da Rua Mestre Adriano com a Avenida Matarazzo –
os antoninenses que me leem sabem direitinho onde é - acabei me deparando com uma cobra-vidro. Assustado,
acabei pisando nela, que se partiu em dois pedaços. Sai de lá meio orgulhoso do
meu feito de enfrentar uma cobra, mas triste vendo aquele pobre animal se
esvaindo na calçada. Não é uma lembrança da qual me orgulho.
Digo isso porque, nesta madrugada insone deste infame 17 de
abril, acabei me lembrando deste episódio. Na verdade, a democracia é um bicho
feio como a cobra-vidro. É desengonçada, terrível, aspecto feio e gosmento. Dá trabalho
gostar dela. Quando atacada, às vezes ela expele parte do seu corpo para
escapar dos agressores. E fica ali, frágil, escondida no capim, esperando se
recuperar. Ou não.
O que foi feito neste dia foi uma operação desesperada. De alguns,
pensando que se tratava de tirar um governo corrupto que fazia a vida de todos
um inferno. De outro, porque com isso se livravam de punições inevitáveis que
estão por vir. De outros ainda, porque o poder lhes cairia na mão sem ter que
cabalar um só miserável voto popular.
Não condeno a maioria das pessoas que, de maneira apressada,
achou que tirar a presidente Dilma seria como tirar um bode da sala, como conta
a velha piada. Realmente, não dá pra defender o segundo governo Dilma. Foi uma
sucessão de trapalhadas de um governo sitiado desde seu início.
O problema é a cobra – vidro, a pobre democracia brasileira.
Ela é pequena, frágil, desengonçada. Este é seu maior período de estabilidade democrática
em toda a nossa historia. Quando agredida, ela solta pedaços tenta sobreviver. Mas
há um limite para esta sobrevivência.
Um processo de impeachment, com argumentos tão fracos é um
processo muito, muito perigoso. Os argumentos eram tão fracos que os deputados
preferiram falar em nome de Deus (em vão, como ensinam os catecismos!) do que
explicar a seus eleitores que condenavam as pedaladas fiscais.
Condenar um governante por pedaladas fiscais, alias, é como
expulsar um jogador por jogar com a camisa pra fora do calção. Não é a
penalidade adequada. E deixa um precedente perigoso. Qualquer um pode ser
impedido no futuro por procedimentos duvidosos, só na base do porque sim.
E, pior, estamos deixando de lutar contra a corrupção. Sim,
a votação deste domingo vai referendar a impunidade de Eduardo Cunha e seus
asseclas. Ele entrega Dilma, e seus pares o blindam de seus processos. Cadê a
indignação, cadê as ruas cheias de indignação verde e amarela?
Ele deve estar morrendo de rir da cobra de vidro
estrebuchando na sua frente, como um vilão de filme de sessão da tarde.
Infelizmente este processo, que ainda não terminou, ainda
deixará muitas sequelas em nosso país....