quinta-feira, 11 de março de 2021

O GRANDE DESASTRE DE 11 DE MARÇO DE 2011

 

O morro da Laranjeira em 12 de março , após os escorregamentos (foto de Erly Ricci https://bit.ly/3t5Q0XO)

Dedico esta postagem ao povo de Antonina e aos moradores do bairro Floresta, em Morretes, juntos na mesma tragédia


Foi hoje o dia, há dez anos atras. 11 de março de 2011. Um dos piores desastres que o litoral do Paraná enfrentou. Um dos piores desastres que os antoninenses enfrentaram.

Um desastre não começa exatamente durante a chuva torrencial. Muitas vezes ele começa antes. Começa da forma como a sociedade se divide, e na divisão desigual da riqueza, que empurra os menos favorecidos para as áreas mais sujeitas a desastres. Continua nas casas, construídas nas regiões mais vulneráveis e da maneira mais precária.

Durante o momento “quente” do desastre existe muito esforço de ajudar. Existe aquela saudável animação de Bombeiros, Defesa Civil, prefeitura, muita gente pelas ruas. Mas depois, quando o assunto esfria, quando o jornalista deixa de pautar a notícia, quando o dia a dia se impõe, o desastre continua por outros meios.

Em março de 2011, em Antonina e Morretes, no dia anterior tinha chovido muito. Naquela sexta feira, 11 de março de 2011, o mundo caiu sobre o litoral do paraná. A quantidade de chuva, que nos poucos pluviômetros que tínhamos então na região, pontam marcas de até 260 mm por metro quadrado por dia. Para que se tenha uma ideia, um furacão tem chuvas de até 600 mm/dia.

A quantidade de chuvas era o suficiente para gerar uma catástrofe. E catástrofe foi o que aconteceu em vários pontos do litoral paranaense naquele dia.

A defesa civil antoninense fez o dever de casa, e chamou a sede em Curitiba. O pessoal desceu, juntamente com alguns geólogos da MINEROPAR, entre eles Rogerio Felipe. Ao chegar no sopé do morro da Laranjeira, Rogerio ficou muito assustado com o que viu. “Falei para Defesa Civil tirar todo mundo”, me contou, emocionado, tempo depois. A percepção de Rogério foi a diferença entre a vida e a morte das pessoas que ali moravam.

A única vítima, infelizmente, foi seu Pedrinho, que tinha ficado de tomar banho antes de sair de sua casa. Não deu tempo. Quando os bombeiros resgataram seu corpo, o velho porteiro do Cine Opera na minha infância, agora um senhor de 80 anos, já estava morto. À noite, nos fundos do cemitério são Manoel, uma torrente tiraria a vida de uma jovem mãe que havia voltado à casa para pegar a mamadeira de seu filho. Estas foram as duas vítimas capelistas da grande tragédia.

Em Morretes, o rio Nhundiaquara havia subido, inundando a cidade mais uma vez. Havia escorregamento por todos os lados da cidade, mas no distrito de Floresta, na Serra da Prata, na divisa com Paranaguá, entretanto, a situação foi bem mais dramática. Uma série de torrentes de detritos varreu os morros da Serra da Prata, arrasando a comunidade de Floresta. Segundo seu Arlindo Capeta, morador e líder comunitário do bairro, com quem conversei depois, “teve um grande estrondo e a terra começou a tremer”. Veio água, veio pedra, veio arvores enormes descendo com a correnteza, contou ele.

Seu Eurides Lucheta, que tinha uma casinha perto do morro do Gigante, mais adiante na serra, ficou isolado por três dias, só se alimentando de bananas e tomando agua suja. No domingo, foi resgatado por um helicóptero da Polícia Militar. É dele a descrição mais precisa do tipo de torrente que descia a serra. Ele contou que uma cachoeirinha que tinha nos fundos de sua casa subitamente secou. Provavelmente formou-se um grande barramento natural de rochas e tronco serra acima. Quando o barramento se desfez, houve um grande estrondo, e ele correu para se abrigar nas pedras. A torrente veio feroz, e levou sua casinha e seu cachorro, que havia ficado para trás. “Parecia uma onda grande do mar”, nos contou ele.

O bairro de Floresta após os fluxos de detritos e as inundações de 11 de março de 2011 (foto: Renato Lima/CENACID)

Quando cheguei à Antonina no dia 14 de março, numa missão do CENACID, o Centro de Apoio Científico em Desastres da UFPR, chefiado por nosso amigo e companheiro Renato Lima, a situação estava confusa na Deitada-a-beira-do-mar. Ainda muita lama pela cidade, o grande escorregamento da avenida Nenê Chaminé barrava a rua. Na Laranjeira, era só desolação: casas que desapareceram, casas danificadas, casas ainda intactas, o cheiro de terro e morte.

Diziam que a grande pedra do Morro da Pedra iria cair. Subimos lá e vimos que estava firme como nunca. Diziam que havia fendas no Morro do Joubert, ameaçando as casas da Graciosa de Cima. Sim, havia uma fenda ocasionada pelas chuvas, e ela estava em atividade, apresentando algum risco. Monitoramos sua movimentação por três dias, até que cessou de se movimentar. Enquanto isso, os bombeiros e a Defesa Civil pediram que as pessoas deixassem suas casas na Graciosa de cima e de baixo. A medida era exagerada, mas ninguém tinha certeza do que estava por vir. Era uma precaução exagerada, mas que evitaria perdas de vidas, e ainda me parece bastante razoável.

Foram três dias intensos, onde eu, minha colega de CENACID, a geóloga Fabiane Acordes, e o nosso líder de missão, Renato Lima percorremos vários morros, andamos vendo várias situações. Foram também várias reuniões, com o pessoal da Defesa Civil, os técnicos, e os voluntários. Dentre estes, conheci vários conterrâneos que a ocasião juntou, desde funcionários da prefeitura, colegas, vizinhos e curiosos, que sempre davam um tempero especial às nossas correrias.

Tive também oportunidade de voltar diversas vezes para acompanhar o pós-desastre. Entre 2011 e 2014 fiz diversos campos com meus alunos nos morros de Antonina e Serra da Prata, onde fizemos diversos trabalhos e muitos ensaios. Boa parte destes trabalhos estão publicados em diversos eventos, tanto no Brasil como no exterior.

Poucas vezes, no entanto, tivemos a chance de ter uma devolutiva para a população. Por diversos motivos, acabamos por não conversar sobre as pessoas sobre o que aconteceu. Há poucos anos, em 2017, por ideia de meu aluno Gabriel Facuri, organizamos uma reunião com os moradores do bairro Floresta. Foi muito interessante a troca. Aprendemos muito também. Podemos voltar a falar só disso em outro momento.  

Em geral, as vítimas destes grandes desastres passam por muitos problemas quando o momento mais agudo do desastre termina. Sofrem pressões de diversas formas, muitas vezes são impedidos de voltar as áreas que ocupavam. Muitos apresentam traumas psicológicos difíceis de sanar. Crianças e adolescentes, quando não tem assistência adequada, podem passar para o crime ou o desajuste social.

Passaram-se dez anos. Mas existem ainda muitas pontas soltas do desastre. Hoje, um medo de chuva toma conta das pessoas que se lembram dos dias trágicos. Algumas, tem síndrome do pânico. Outras, estão desalojadas. Antonina ainda não incorporou o bairro da Laranjeira, embora tenha até projetos de transformar a área num parque. O próprio Morro da Pedra perdeu todo o chamativo que tinha como um cartão postal da cidade. As pessoas ainda não sabem direito o que aconteceu. Os estudiosos não deram uma devolutiva adequada de seus estudos à comunidade.

O que fazer num próximo desastre?  Estamos preparados? Como podemos fazer para enfrentar melhor um desastre semelhante?

Segundo um proverbio japonês, povo acostumando com todo tipo de desastre, os desastres acontecem quando nos esquecemos deles. Fica a dica.


(também agradeço a Renato Lima, Fabiane Acordes, Carlos Augusto Canduca Machado e José Paulo Vieira Azim, sem a ajuda dos quais eu não teria conseguido estar e trabalhar na minha cidade quando esta precisou de minha modesta ajuda)

sexta-feira, 5 de março de 2021

O ANO DO CORONA

 


Já faz um ano.

Naquele mês de março, as nuvens foram sumindo do céu. Os cumulo-nimbus eram cada vez menores e mais brancos, lá longe no horizonte. Depois, o por do sol começou a ficar mais vermelho, e um vento frio balançava os galhos das arvores. Era o fim da estação das águas.

Neste tempo, estávamos ainda discutindo com os empresários da necropolítica, que faziam de tudo para minimizar as “12 mil mortes” que fatalmente aconteceriam. Alguns falavam que só matariam os velhos. Só. Não resolveríamos nada com pânico, diziam. O importante era salvar a economia.

O tempo passou, e o álcool gel invadiu nossas casas. Ainda sem saber como fazer com a nova situação, lavávamos tudo obsessivamente. Para dizer bem a verdade, ainda lavamos. Cheguei a pegar um eczema nos pulsos, de tanto sabão que usei.

No começo, não tinha máscara ainda. Hoje, sabemos porque: não tinha máscara para todo mundo, e se dizia que não precisava. Aí mandamos fazer máscaras de pano. Muita gente, subitamente desempregada, começou a investir em fazer máscaras muito bonitinhas, de tudo que é tipo de pano

Nos assustamos muito quando vimos os caminhões cheios de corpos na Itália. Ficamos amedrontados com os corpos na rua em Guayaquil.

Quando a primeira onda começou a chegar, lenta como uma maré, tentávamos imaginar quando seria seu pico de contaminações e mortes. Quando? Diante de algum resultado ligeiramente menor das estatísticas, alguns incautos diziam que o pico já havia sido atingido. Mas não era pico, ao menos não pra nós. Foi um imenso planalto de mortes diárias, que atravessamos com mortes diárias muito elevadas e hospitais quase cheios.

O céu já estava claro, com um sol cada vez menos intenso. Choveu um pouco, mas já estava seco, e o ar ficou mais cheio de pó. Era o mês de maio chegando.

Em 25 de maio, em Minneápolis, nos Estados Unidos, um policial matou um homem negro chamado George Floyd, acusado de passar uma nota falsa de 20 dólares. Durante 8 minutos s 46 segundos, metodicamente, o policial Derek Chauvin ficou com o joelho no pescoço de Floyd, terminando por matá-lo.

Poderia ser mais uma pessoa negra morrendo nas mãos da polícia, seja nos Estados Unidos seja no Brasil, onde um jovem negro é assassinado a cada 23 minutos, segundo dados de uma CPI no Senado de 2015. Mas não. Não desta vez. Como uma grande onda, o clamor contra este tipo de assassinato, cruel e metódico, varreu os Estados Unidos em grandes e massivos protestos, que acabaram por atingir totó o mundo, até mesmo no Brasil, tão longe e tão perto das ruas de Minneápolis.  

“Não consigo respirar”, teria dito Floyd. Pois foi justamente isso que milhares, centenas de milhares e enfim milhões de pessoas sentiram durante todo o mundo, enquanto a epidemia se alastrava.

Primeiro foi Manaus que sentiu o baque, depois uma a um os outros estados tiveram centenas e milhares de mortos. Em agosto foram 100 mil, em janeiro dobrou, e agora estamos a seguir 300 mil mortes, boa parte delas evitável.

Alguns até viram um fim durante os dias quentes e abafados de setembro e outubro, com o céu repleto de cinzas e poeira. Pelo segundo ano consecutivo, a Amazonia sofria com os fogaréus, enquanto o Pantanal virava um imenso braseiro. Consta que ao menos 40 % do bioma foram queimados.

Em novembro, quando o calor e as primeiras chuvas anunciavam a estação das águas, o coiso na TV esbravejava contra a vacina de seu inimigo, dizendo que quem tomasse iria virar Jacaré. As mortes e contaminações, que estavam decrescendo, voltaram a aumentar. A barbárie, essa nossa companheira tão conhecida, nos fez o ar da sua (des)graça: as novas variantes do vírus surgiram, trazendo o caos novamente para Manaus.

Ali, como George Floyd, muitos não podiam respirar, agora por falta de oxigênio. Foi a malfadada e maltratada Venezuela que socorreu os manauaras em seu período mais crítico. Devastada pela ausência dos botijões de oxigênio nos hospitais, as famílias compravam elas mesmas os botijões para seus entes queridos, alertando o governo sobre as futuras vantagens da privatização do ar.

Em plena estação das chuvas, o verão, todo o país agonizante e sem ar. O orgulhoso Sul e suas colônias europeias, o Sudeste e suas empresas modernas, o Centro Oeste e suas colheitadeiras e agrotóxicos, todos jazem agora em filas intermináveis esperando por um leito de UTI. As pessoas sem máscara, as pessoas se aglomerando em festas clandestinas, as pessoas urrando que a economia não pode parar, mas o vírus não está nem aí. Indiferente à economia e às explosões de inútil virilidade, o vírus trabalha e mata.  

As nuvens voltam a sumir no céu, lá longe no horizonte. Um friozinho invade nossas janelas. E a sensação de um ano que não termina, que não terminou. Apesar das vacinas, apesar do cansaço geral, precisamos superar a angústia e vencer a ignorância e brutalidade que nos domina.

O ano do corona é um ano que tão cedo não termina.