Já faz um ano.
Naquele mês de março, as nuvens
foram sumindo do céu. Os cumulo-nimbus eram cada vez menores e mais brancos, lá
longe no horizonte. Depois, o por do sol começou a ficar mais vermelho, e um
vento frio balançava os galhos das arvores. Era o fim da estação das águas.
Neste tempo, estávamos ainda
discutindo com os empresários da necropolítica, que faziam de tudo para
minimizar as “12 mil mortes” que fatalmente aconteceriam. Alguns falavam que só
matariam os velhos. Só. Não resolveríamos nada com pânico, diziam. O importante
era salvar a economia.
O tempo passou, e o álcool gel
invadiu nossas casas. Ainda sem saber como fazer com a nova situação, lavávamos
tudo obsessivamente. Para dizer bem a verdade, ainda lavamos. Cheguei a pegar
um eczema nos pulsos, de tanto sabão que usei.
No começo, não tinha máscara
ainda. Hoje, sabemos porque: não tinha máscara para todo mundo, e se dizia que
não precisava. Aí mandamos fazer máscaras de pano. Muita gente, subitamente
desempregada, começou a investir em fazer máscaras muito bonitinhas, de tudo que
é tipo de pano
Nos assustamos muito quando vimos
os caminhões cheios de corpos na Itália. Ficamos amedrontados com os corpos na
rua em Guayaquil.
Quando a primeira onda começou a
chegar, lenta como uma maré, tentávamos imaginar quando seria seu pico de contaminações
e mortes. Quando? Diante de algum resultado ligeiramente menor das
estatísticas, alguns incautos diziam que o pico já havia sido atingido. Mas não
era pico, ao menos não pra nós. Foi um imenso planalto de mortes diárias, que
atravessamos com mortes diárias muito elevadas e hospitais quase cheios.
O céu já estava claro, com um sol
cada vez menos intenso. Choveu um pouco, mas já estava seco, e o ar ficou mais
cheio de pó. Era o mês de maio chegando.
Em 25 de maio, em Minneápolis,
nos Estados Unidos, um policial matou um homem negro chamado George Floyd,
acusado de passar uma nota falsa de 20 dólares. Durante 8 minutos s 46
segundos, metodicamente, o policial Derek Chauvin ficou com o joelho no pescoço
de Floyd, terminando por matá-lo.
Poderia ser mais uma pessoa negra
morrendo nas mãos da polícia, seja nos Estados Unidos seja no Brasil, onde um
jovem negro é assassinado a cada 23 minutos, segundo dados de uma CPI no Senado
de 2015. Mas não. Não desta vez. Como uma grande onda, o clamor contra este
tipo de assassinato, cruel e metódico, varreu os Estados Unidos em grandes e
massivos protestos, que acabaram por atingir totó o mundo, até mesmo no Brasil,
tão longe e tão perto das ruas de Minneápolis.
“Não consigo respirar”, teria
dito Floyd. Pois foi justamente isso que milhares, centenas de milhares e enfim
milhões de pessoas sentiram durante todo o mundo, enquanto a epidemia se alastrava.
Primeiro foi Manaus que sentiu o
baque, depois uma a um os outros estados tiveram centenas e milhares de mortos.
Em agosto foram 100 mil, em janeiro dobrou, e agora estamos a seguir 300 mil
mortes, boa parte delas evitável.
Alguns até viram um fim durante
os dias quentes e abafados de setembro e outubro, com o céu repleto de cinzas e
poeira. Pelo segundo ano consecutivo, a Amazonia sofria com os fogaréus, enquanto
o Pantanal virava um imenso braseiro. Consta que ao menos 40 % do bioma foram
queimados.
Em novembro, quando o calor e as
primeiras chuvas anunciavam a estação das águas, o coiso na TV esbravejava
contra a vacina de seu inimigo, dizendo que quem tomasse iria virar Jacaré. As
mortes e contaminações, que estavam decrescendo, voltaram a aumentar. A
barbárie, essa nossa companheira tão conhecida, nos fez o ar da sua (des)graça:
as novas variantes do vírus surgiram, trazendo o caos novamente para Manaus.
Ali, como George Floyd, muitos
não podiam respirar, agora por falta de oxigênio. Foi a malfadada e maltratada Venezuela
que socorreu os manauaras em seu período mais crítico. Devastada pela ausência dos
botijões de oxigênio nos hospitais, as famílias compravam elas mesmas os botijões
para seus entes queridos, alertando o governo sobre as futuras vantagens da
privatização do ar.
Em plena estação das chuvas, o
verão, todo o país agonizante e sem ar. O orgulhoso Sul e suas colônias europeias,
o Sudeste e suas empresas modernas, o Centro Oeste e suas colheitadeiras e agrotóxicos,
todos jazem agora em filas intermináveis esperando por um leito de UTI. As
pessoas sem máscara, as pessoas se aglomerando em festas clandestinas, as
pessoas urrando que a economia não pode parar, mas o vírus não está nem aí. Indiferente
à economia e às explosões de inútil virilidade, o vírus trabalha e mata.
As nuvens voltam a sumir no céu,
lá longe no horizonte. Um friozinho invade nossas janelas. E a sensação de um
ano que não termina, que não terminou. Apesar das vacinas, apesar do cansaço geral,
precisamos superar a angústia e vencer a ignorância e brutalidade que nos
domina.
O ano do corona é um ano que tão
cedo não termina.
Texto incrível para a triste realidade, na qual a ignorância e a imbecilidade dominam no Brasil. Surreal!
ResponderExcluirmuito obrigado!! quem no pior dos sonhos imaginou uma realidade tão perto da distopia, não é?
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