quarta-feira, 29 de março de 2017

OS "MILIONARIOS DOS QUILÔMETROS" CHEGAM AO FIM DA JORNADA




Era uma segunda feira de quaresma, e a igreja matriz de Antonina estava cheia. Parecia que era festa de agosto, a igreja lotada de gente, o burburinho tomando conta do átrio e ressoando pela nave da matriz. Era um dia de festa e regozijo. As oito horas da noite do dia 9 de março de 1942 o padre Leonardo Starzinski rezou uma missa em homenagem aos cinco escoteiros.
Faziam sete anos que o padre Leonardo estava ali na paroquia. Iniciara seu vicariato em 1936, substituindo o enérgico padre Bernardo Peirick, que havia feito muitas reformas na matriz, que ainda hoje guardam seu estilo. Padre Leonardo, ao contrário de padre Bernardo, eram um catequizador. Naquela noite na missa noturna, esperando pelo seu sermão, havia paroquianos especiais: os cinco rapazes recém-chegados de sua jornada a pé ao Rio de Janeiro.
Para o sermão, escolheu alguns trechos selecionados do Êxodo, falando das agruras sofridas pelos judeus em sua busca pela Terra Santa. Os sacrifícios, os descaminhos, as incertezas, tudo isso foi citado em seu sermão. Os rapazes escutaram tudo com atenção e devoção. Ao encerrar, padre Leonardo pediu a Deus para que os rapazes seguissem sempre os caminhos do Bem. E ressaltou que o seu feito servisse de modelo para as gerações de escoteiros do futuro, como anotou Lydio Cabrera em seu diário.
A aventura chegara ao fim. Depois das festividades da volta, houve ainda diversas atividades sociais a cumprir. Lydio nos conta que, no dia seguinte à chegada, aceitara tomar um chá na casa da Profª Assíria Linhares, onde contou um pouco de sua experiência à velha mestra. À tarde, os cinco rapazes foram visitar o capitão Custodio Raposo Neto, Prefeito Municipal, junto a outras autoridades, conforme anotou Lydio. Depois, ainda deram uma entrevista para o jornalista João da Cruz Leite, editor do Jornal de Antonina. Já estava de noite quando saíram de lá.
Mas as festividades prosseguiam: ainda nesta noite houve um jantar de confraternização na casa do Chefe Picanço. Lá, em volta da mesa, seu Manequinho fez um pequeno discurso, dizendo-se muito satisfeito com o feito dos cinco rapazes. Ressaltou que os esforços e a força de vontade de cada um haviam contribuído para o sucesso da missão. Eles eram, para seu Maneco, o orgulho do escotismo antoninense. Talvez, frisou o chefe, um feito desta envergadura nunca mais viesse a ser repetido no escotismo brasileiro.
Na reunião da noite, na Caserna dos Escoteiros, houve ainda uma Sessão Cívica. A bandeirante Araildes Horibe saudou os rapazes, finalizando com estas palavras: “os vossos nomes serão gravados na História de Antonina e com letras de ouro, no livro desta Associação, como os milionários dos quilômetros”. O Chefe Beto, agradecendo as palavras da Bandeirante Escoteira, disse que, “se fosse preciso, eles o fariam novamente, e com grande satisfação”. Ao final, a banda musical da tropa escoteira começou a tocar um dobrado, aumentando a alegria da festa. Com todos eufóricos cantando o Hino Nacional, a sessão foi finalmente encerrada. A missão havia acabado.
Ao sair da igreja aquele dia, sentindo o vento fresco vindo do mar, os cinco rapazes não sabiam do que a vida ia fazer deles. Cada um voltou a suas casas, a suas famílias, e cada um viveu suas vidas. Os meninos, durante toda sua vida, foram intensamente homenageados na cidade, onde viraram nome de rua, e onde sempre foram solicitados a contar os detalhes de sua aventura.
Mas sua missão não foi jamais esquecida. Hoje, mais de 70 anos, os valentes e ingênuos rapazes da Capela ainda povoam as nossas mentes. Não há antoninense que não saiba, ao menos por cima, sobre a sua expedição. Alguns os chamam de heróis. Outros, de loucos. Outros, ainda, acham que seu sacrifício valeu somente para um bando de políticos aproveitadores. Muito embora o significado verdadeiro de sua jornada se tenha perdido no tempo e nas memorias de quem a viveu, o feito ainda impressiona.
Não há como não se impressionar com cinco rapazes perdidos no mundo para entregar uma carta ao presidente. A carta em si não significou muito, mas a jornada colocou Antonina no mapa. Isto não é pouco.

quinta-feira, 23 de março de 2017

O CURIÓ DE SEU ADMARO



Certa vez, o Sr Admaro Santos estava atrás de um bom curió cantador. Sabendo da demanda, nosso amigo Pompéia apresenta ao Jornalista um curió que lhe agradou bastante. Negócio feito, Sr Admaro colocou a gaiola em sua varanda para ouvir a suave cantoria.
Entretanto, começou a perceber que a pobre ave não conseguia subir direito ao poleiro. Mancava, puxando uma perninha. Ao perceber isso, procurou logo o Pompéia, para colocá-lo a par do que acontecia com o curió.
Ao saber do ocorrido e levar um sabão do Sr Admaro, Pompéia não se abalou. Ouviu até o fim, e depois perguntou, em sua defesa:
“Doutor, o senhor quer um curió que cante ou um curió que dance? ”

PS – esta história me foi contada há uns dois anos atrás durante o Jequiti Cultural pelo meu amigo Epitácio Machado. Não menos importante, foi contada junto com o próprio Pompéia, que só deu um sorriso maroto quando perguntei se era mesmo verdade...Será que Seu Maneco gostaria de conta-la?

quarta-feira, 15 de março de 2017

A VOLTA PRA CASA: A CHEGADA TRIUNFAL!


Ao cair da tarde do dia 4 de março de 1942, depois de passar ao largo de Cananeia e entrar no canal da Ilha do Mel, o vapor que conduzia os cinco escoteiros estava chegando ao atracadouro do porto de Paranaguá. O fato do navio chegar até ali e não ir até Antonina era simplesmente o fato causador da viagem dos rapazes, fazia três meses quase: o fechamento da Companhia Costeira pelo Governo Federal, que fazia a rota comercial até Antonina.
A carta que os rapazes haviam entregado explicava ao Ditador as razões da cidade para ter a volta dos navios da Costeira de volta. Antonina era o caminho mais curto para Curitiba, servido diretamente pela estrada da Graciosa. Era o atracadouro mais ocidental da baia de Paranaguá, com obvias vantagens em termos de distância e, consequentemente, em fretes.
Os navios da Costeira, que haviam sido recentemente estatizados pelo Governo, eram o grande elo que unia Antonina na rede do comercio de cabotagem do Brasil. Sem ele, o comercio perdia todas as suas vantagens e a cidade perderia muito em importância e em dinheiro. Na carta, a cidade pedia que a costeira pudesse voltar, e apelava para os mais nobres sentimentos do ditador.
Getulio fez o que lhe convinha: posou para fotos com os rapazes, ressalvou-lhes a coragem. Fez com que a Costeira voltasse a tocar, de maneira tímida, o atracadouro antoninense. Mas era pouco. Quando o ditador caiu, em 1945, a Costeira desapareceu tão irremediavelmente que nenhuma viagem a pé poderia faze-la voltar. A viagem dos rapazes que agora terminava como um grande sucesso, na verdade havia sido um movimento de grande coragem, mas em vão.
Longe deste horizonte, os rapazes iam acompanhando a manobra do navio para atracar no porto de Paranaguá naquele início de noite. No cais, os meninos foram recebidos pelo chefe dos escoteiros de Antonina, Maneco Picanço, e por alguns antoninenses que moravam na cidade. Foi uma grande festa. Um Ford V8 preto estava ali, esperando para levar os rapazes de volta para casa. Seria a última viagem até Antonina, de onde haviam partido em dezembro.
O motorista foi encher o tanque, uma tarefa bastante complicada naqueles tempos. A gasolina estava racionada em tempos de guerra, e demorou quase duas horas para voltar com o tanque cheio. De tanque cheio também estavam os rapazes, levados pelo Chefe para fazer uma boquinha antes da última viagem.
O Ford deixou Paranaguá as 22:00 horas, passando pela vila de Morretes despois de quase duas horas de viagem. Prosseguiram até Porto de cima e São João, no entroncamento da Estrada da Graciosa, onde pararam para descansar. Ali estava esperando por eles o Sr Nicolau Cecyn, em seu Ford verde, para acompanha-los no trecho final. No quilometro 8 da rodovia da graciosa o delegado de polícia de Antonina, o Sr Penny Withers, esperava para dar a boa vinda aos rapazes, em nome do prefeito, Capitão Custodio Afonso Neto.
Quando a caravana chefiada pelo Ford Preto cruzou a Avenida Thiago Peixoto, os foguetes começaram. Segundo Lydio, o espetáculo pirotécnico era indescritível. Foguetes e morteiros estouravam sem cessar, anota ele. Os carros só pararam, em meio ao foguetório, depois do portal da cidade, próximo do pátio da Estação Ferroviária. Uma grande multidão cercava os rapazes, dando-lhes beijos e abraços.
Como Lydio anotou em seu diário, teve início um grande desfile escoteiro nas ruas de Antonina que durou parte da madrugada, que só terminou na Caserna da Tropa Valle Porto, acompanhados por grande massa de pessoas. Ali, finalmente, os rapazes foram dispensados de sua missão e puderam ir para suas casas.
Ao chegar em casa, com sua família, Lydio conta que estava muito excitado para dormir. Estava cansado, com fome, mas sem sono, querendo desesperadamente falar. Sua mãe, dona Nathalia, foi fazer um café. Enquanto isso, Lydio contava para seu pai alguns dos detalhes da viagem. Eram 4 da manhã quando finalmente conseguiu pegar no sono. Segundo conta, sentia falta do balanço do navio. Fechava os olhos e tentava reter na memória tudo o que havia acontecido naquela memorável madrugada.
Enfim, em casa!

quarta-feira, 8 de março de 2017

A VOLTA PRA CASA: PASSEANDO EM SANTOS


A praça Rui Barbosa e os bondes de Santos, cerca de 1940
Estava já escuro, mas mal o Vapor atracou nas docas do porto de Santos Lydio saltou para terra. Queria conhecer a cidade. Ficou muito impressionado com o movimento comercial do centro, mesmo àquela hora da noite. Visitou as praças Rui Barbosa e José Bonifácio, que gostou muito. Mas ficou mesmo impressionado com os bondes da cidade.
Os bondes tinham motorneiros vestidos em impecáveis ternos brancos, e usavam luvas. Chamou atenção os vastos bigodes que quase todos eles apresentavam. Só depois, mais tarde, se deu conta que eram quase todos portugueses. Deixando para trás os bondes, e andando um pouco mais, Lydio viu um circo.
Era o circo Piolom. Com sua tenda armada num terreno baldio das proximidades, estava bem na hora de mais um grande espetáculo. Provavelmente, o maior espetáculo da Terra. A vontade que Lydio sentiu de assistir ao espetáculo daquela noite só não foi maior do que o medo de perder o navio. Entrou de volta pelo armazém 12 e andou pelo cais apreciando os navios ali ancorados.  
Estavam ali ancorados diversos navios americanos e ingleses, os quais mostravam, na proa e na popa, canhões e metralhadoras antiaéreas. O tempo de guerra e o encontro com submarinos e belonaves alemãs não era uma ameaça distante, como já vimos. Os navios brasileiros que Lydio encontrou ali atracados também estavam armados. Mais do que os navios de guerra, entretanto, os cassinos flutuantes que também estavam ancorados ali também chamaram a sua atenção.
Havia muita gente e muita luz. De lá de dentro, muita música também ressoava. No interior do navio-cassino, imagina, Lydio, jogava-se e dançava-se freneticamente. A maioria dos frequentadores, segundo nota, eram estrangeiros. No próprio vapor em que viera, o carteado também corria solto no convés. O clima de festa dos navios ressoou intenso. No entanto, tinha que voltar ao seu navio. De volta, correu ao seu camarote e dormiu sob o embalo das ondas.
Pela manhã, ao acordar, os rapazes viram o movimento intenso do porto, com seus guindastes trabalhando freneticamente tirando e colocando cargas destinadas a todos os lugares do brasil e do mundo. Após o café, saíram para conhecer a cidade, agora de dia.
Após visitarem um conhecido de Antonina que estava morando em Santos, os rapazes andaram pelo centro e passearam pelas praias de Gonzaga e José Menino. Passaram de bonde pelo estádio de Vila Belmiro onde, mal sabiam eles, surgiria, dezesseis anos depois, a maior lenda do futebol mundial e um dos maiores times de futebol já vistos. Mas isto é outra história. Na cidade, mais do que o futebol, o que mais chamou a atenção dos rapazes foram os canais.
Iniciados em 1907 pelo engenheiro Saturnino de Brito, os canais eram uma grande inovação higienista e urbanística, drenando os terrenos alagadiços da Ilha e controlando as aguas pluviais. Contribuíram para o controle de doenças e induziram a ocupação urbana da cidade durante o século XX. O mais novo dos canais só seria terminado em 1968. Em 1942, os canais de Santos já eram uma obra de chamar a atenção dos jovens escoteiros. Lydio também notou os morros de Santos, observando lá em cima, a mancha branca da igreja de N.S. de Montserrat. Era hora de voltar ao navio.
Os rapazes ficaram no salão do navio, ouvindo as músicas tocadas ao piano pela jovem Doralice, gaúcha de Porto Alegre. De namorico com Milton Horibe, a gauchinha ficou por lá conversando alegremente com os rapazes, até que chegou a hora de se recolherem. Durante a madrugada, Lydio saiu ao convés para ver a tempestade que já citamos, a qual quase lhe custou a vida. Logo depois, o escoteiro voltou ao camarote e dormiu pesadamente. Quando acordou, havia perdido o café da manhã. No entanto, ao conversar no convés com um marujo, descobriu que estariam chegando em casa no começo daquela mesma noite.
Enfim, de volta pra casa!

sábado, 4 de março de 2017

A VOLTA PARA CASA: SOB A MIRA DOS SUBMARINOS ALEMÃES


Em março de 1942, a viagem de volta dos escoteiros antoninenses tinha o risco real de ataques de submarinos alemães
Na madrugada de 3 para 4 de março de 1942, o navio enfrentava uma forte tempestade em alto mar. Lydio Cabrera, entre assustado e encantado com o balanço do navio, saiu para fora.  Uma onda acabou atirando o escoteiro para os cabos da amurada, e Lydio receou que fosse atirado ao mar pelos vagalhões de agua salgada que varriam o convés. Um frio lhe correu a espinha e foi forte o medo de morrer ali, sem voltar a ver seus amigos e sua família.
Lydio ficou ali agarrado aos cabos mais uns quinze minutos, até que tomou coragem e voltou a seu camarote. Estava encharcado e gelado. Tomou um banho, caiu na cama e dormiu pesadamente. A viagem de volta estava tão cheia de histórias e percalços quanto a ida a pé até o Rio.
Haviam embarcado havia dois dias, de volta para a sua querida Antonina.  Ainda no Rio, o general Heitor Borges, chefe e grande patrocinador do escotismo no Brasil, havia feito uma brincadeira com os meninos, pedindo-lhes que voltassem de outra forma que não fosse a pé.  No dia da partida, o carro preto do General Heitor, dirigido pelo Dr. João, passou no quartel para levar os rapazes ao porto.
Ali no cais, ao se despedir do Dr. João, que tanto havia cuidado deles, os rapazes se emocionaram. Lydio conta em seu diário ter derramado algumas lagrimas naquela despedida. Sem a pronta ajuda do Dr João e de toda a Diretoria da UEB na época, os quatro rapazes não teriam se desincumbido de sua tarefa.
Já no navio, ao singrar as aguas da baia de Guanabara rumo a casa, os rapazes foram vendo as fortalezas do Rio de Janeiro e as montanhas azuis ao fundo, com um ar nostálgico de despedida. A paisagem foi sumindo no horizonte, até que só se via céu e mar.
Em viagem de primeira classe, os rapazes foram conhecendo um mundo novo: visitaram todo o convés, foram conversar com o comandante e com a tripulação, desceram ao porão para ver a casa de máquinas do navio. Desfrutaram das refeições fartas e exóticas. Lýdio experimentou lagosta pela primeira vez na vida. Em seu diário, anotou que as tais lagostas eram "uma espécie de camarão gigantesco, muito saboroso e de fácil digestão". Nas sobremesas, os rapazes se deliciaram com  sorvete de goiaba, tão bom que sempre repetiam.
Naquela noite o barco continuava navegando rumo sul, todo pintado de preto, e com as luzes apagadas. Quando os rapazes chegaram ao Rio, havia sido encerrada por aqueles dias a III Reunião de Consulta dos Chanceleres das Repúblicas Americanas. Esta conferência foi muito importante porque definiu a posição brasileira alinhada com os países Aliados e contra as potencias do Eixo.
O ataque a Pearl Harbour havia sido realizado em dezembro, poucos dias antes dos rapazes partirem de Antonina. Nesta reunião no Rio de Janeiro todos os países do continente americano, com a exceção de Argentina e o Chile, haviam se alinhado contra a agressão sofrida pelos Estados Unidos. Em pouco tempo, os submarinos alemães iriam começar o que um comandante alemão chamou de “alegre carnificina”: o ataque contra os navios mercantes nacionais, que vitimou por volta de 3.500 brasileiros e que seria decisivo para a declaração de guerra aos países do Eixo que o governo brasileiro fez cinco meses depois, em agosto.
Enquanto isso, Lydio anota em seu diário as precauções da embarcação para uma viagem em tempos de guerra. Com o receio de um ataque, o barco viajava todo pintado de preto, e nenhuma luz podia ser acesa no navio. Sequer fumar no convés era permitido. No meio de tantas preocupações, Lydio certificou-se de colocar um colete salva-vidas ao lado do beliche, para o caso de qualquer perigo.
Na primeira noite, a agitação entre os passageiros era geral: com o embalo do navio, os passageiros estavam todos enjoados, vomitando tudo o que haviam comido pela amurada. Milton Horibe, o chefe Beto e Manduca estavam entre os passageiros que passaram mal nesta primeira noite.
Após passar por todo o litoral paulista, tendo ao largo Ilha Bela e São Sebastião, o navio começou a mudar seu curso, e em breve estava atracando no Armazém 3 das docas de Santos. A última etapa da viagem estava chegando.

quarta-feira, 1 de março de 2017

O FIM DO ANFÍBIO


Hoje de manhã, ao abrir a porta da cozinha vi uma cena macabra: umas perninhas boiando, inanimadas,  num balde de agua com Qboa. Ao chegar mais perto vi que não se tratava de nenhum ser liliputiano, mas sim de uma prosaica rãzinha, que acreditou estar voltando pra casa num pulo.
O corpinho da rã boiava no balde à luz da manhã de uma quarta-feira de cinzas. De imediato, não soube muito o que fazer. Funeral de animais é uma coisa complicada. Em geral, o funeral só é reservado para animais muito próximos, tanto na escala evolutiva quanto na vida. O cachorrinho de estimação das crianças. Meu coelhinho, o Bolinha, morto de causas desconhecidas no quintal de minha infância. O pardalzinho que tentamos salvar, eu e minhas irmãs, quando ele caiu do ninho. Mas, uma rã, e da qual nem tinha conhecimento até ver seu corpitcho de nadadora estirado no nosso balde de limpeza?
Optei por coloca-la no lixo, junto com outros dejetos orgânicos e não compostáveis. Ao pega-la pelas patas, vi que ela já estava enrijecida, os olhos abertos, a barriga inchada. Tive um nojinho, confesso. Mas cumpri minha missão.
 E fiquei pensando sobre nossa relação com os animais, principalmente aqueles animais que achamos não ter relações. Semana passada, apareceu aqui em casa uma cobra. Já apareceram outras duas, mas filhotes. Desta vez, segundo nossa diarista, era uma cobra mesmo. Volta e meia também passa por aqui um gambá, que já fez estragos com umas frutas e com o lixo que deixamos descoberto. Tem também os passarinhos, a fazer algazarra e gritar pelas arvores ao redor.
Optamos, Maria José e eu, por não termos animais de estimação. Dá trabalho para os dois lados. Pra criar tem que se dedicar, e, como viajamos muito, achamos que não compensa. Eu já tive os cachorros e outros bichos que meu pai tinha. Depois, tive os cachorros que meus filhos queriam ter. Agora, posso escolher não ter nada.
Mas, pelo que contei até aqui, acho que eles acabam por nos escolher. Acrescento à lista que dei anteriormente uma coruja enorme que as vezes passa por aqui e um sagui que certa vez gritava na nossa porta. São eles, os animais, que nos escolhem.
Vivemos num mundo ainda selvagem. Que digam os gafanhotos e pulgões e formigas que nos infestam o jardim, que ensejaram o surgimento da indústria de pesticidas. Sem contar, é claro, como os pernilongos e outros aedes, que criaram a indústria dos repelentes.
 E assim vamos, convivendo com eles e os exterminando. O extermínio é feito sem dó. Mato um mosquitinho sem ter dó na consciência. Mato um aedes com um misto de medo e fúria. Exterminamos as baratas com venenos e chineladas com um sorriso sádico nos lábios.
E o que dizer de uma morte involuntária, de um animal “bonitinho”? Que confundiu o balde com Qboa do outro balde ao lado, com agua limpa? Como fica então nossa consciência? Gusano, meu caro amigo Gusano, o verme da garrafa de mescal, me olha com um ar de cético: “vocês humanos ó se preocupam com vocês!”. É verdade, Gusano. Só o que é humano nos interessa. Por isso os sapos e  rãs são bonitinhos e as salamandras são demoníacas.
Devemos, então, nos preocupar com os animais por estarmos preocupados com nos mesmos? O que fazer se vivemos numa sociedade que consome mal e muito, com uma conta que não fecha? Parece que estamos presos dentro da cabine de um trem desgovernado cuja chave foi jogada fora. Gostando ou não gostando do que estamos vendo, estamos todos juntos. Quem quer produzir de qualquer jeito e que quer que haja alguma norma que respeite o meio, estamos todos na mesma civilização. Como as duas faces de uma moeda.
Vai dar cara ou coroa? Ou a moeda da civilização vai pro bueiro sem que se saiba o resultado?
Eu só sei que o fim de um  anfíbio não deveria ser  num balde de Qboa.