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E enfim é chegado o tempo em que ela, que sempre esteve entre nós, não nos espera mais na saída de casa, nos banheiros públicos, nos caminhos para as matas. Ela já não tem mais a antiga pressa, embora esteja trabalhando como nunca. Funcionária zelosa e dedicada, ela agora dança alegremente nas ruas, entra em nossas casas, toma caipirinha nas festas de domingo.
A morte dança na rua. Nós não conseguimos enxergar os vírus
com a vista desarmada. As pessoas contaminadas não têm bubões da peste, não tem
diarreias abundantes. Portanto, concluem alguns, não existe essa tal pandemia, embora
estejamos há tanto tempo escondidos em casa, lavando obsessivamente as mãos com
álcool gel e usando máscaras. Contra todos os esforços, as vacinas, as medidas
sanitárias, ela, a morte, gargalha e zomba de nós na frente de nossas casas.
A morte dança na rua, toma ônibus lotados, participa de
cultos ruidosos e ri, fumando um cigarrinho com os peões de máscara no queixo,
na roda de conversa do fim do trabalho. Mas a morte também frequenta festas e barzinhos
da moda, a morte se preocupa com a saúde e frequenta academia cheias de gente
entediada e marombada.
Como num quadro de Brueguel, o que vemos são pequenos
demônios confraternizado em nossas ruas semivazias. Alguns desses passeiam de
carros caros e engalanados de verdeamarelo para saudá-la, a ela, a desenganada
das gentes. A morte sorri seu riso sem dentes, encabulada. Sim, parece que até
para ela tais demonstrações de apoio são demasiadas, desnecessárias, pouco
pudicas. Mas o carnaval dos pequenos demônios segue por nossas ruas, numa
alegre carreata que parece não ter fim, nem senso.
A morte entra desabusada pelos palácios. Lá, senta-se na
mesa de reuniões cercada de homens sérios e cheios de assuntos importantes, dá
ordens e anda sem ser molestada pelos corredores do poder. A morte passeia
entre os comensais dos banquetes, feliz e esvoaçante, contando aqui e ali doces
piadas macabras. E nosso PIB, ali presente, ri, porque eles riem à toa.
A morte zomba de nós, e vai ceifando vidas. Antes era o
conhecido do conhecido, agora o próximo, o distante, o amigo, o ente querido.
Famílias inteiras dão um tributo amargo à morte, que dança nas ruas e nas
praças, dança feliz e sem máscara numa cidade semivazia.
As mortes ocorrem solitariamente, dentro das casas ou nos
hospitais lotados. O paciente, entubado sem sedativos e amarrado para não se
soltar, sofre seu calvário moderno no escondido das UTIs. O desespero de
comprar oxigênio passa longe, nas telas da televisão. Diante de tanta dor,
declaramos que estamos cansados, que temos direito a um pouco de descanso e
sossego, que temos direito a escapar dali, mas pra onde, meu Deus? Pra Praia?
Pro Sertão?
O céu de maio está azul e amplo, passarinhos cantam e
procuram comida, mas nosso mundo está fechado, tomado por uma imensa bruma
verde e amarela, sulfurosa e pútrida. Não há mais pátria, não há mais senso de
unidade. A morte nos unifica, nos agrega, nos seduz. Vacina pouca, meu pirão primeiro, antes ele
do que eu. O presidente ri e conta piadas de nosso desespero em miseráveis
shows de televisão.
O tempo está congelado, não há futuro, só este amargo
presente. Nele, a morte ri e dança nas ruas, numa festa sem fim, num pesadelo
sem direito a acordar.