sábado, 3 de dezembro de 2022

ABOUBACKAR E O HEROISMO SEM CAMISA

Vincent Aboubackar comemorando seu gol na Vitoria sobre a seleção brasileira
MICHAEL REGAN/GETTY IMAGES encurtador.com.br/lxyI8

 
Um fim de tarde brusco e abafado por aqui, muitas nuvens negras no céu. O jogo da seleção brasileira com a seleção de Camarões termina em anticlímax com a vitória da seleção africana por 1 a 0, gol de Vincent Aboubackar.

Aos 45 do segundo tempo, num contra-ataque após a intensa pressão da seleção brasileira, Aboubackar recebeu o cruzamento da direita e escorou de cabeça tirando Ederson da jogada. Belíssimo gol. Com o estádio inflamado com o gol e a torcida brasileira perplexa, Aboubackar tirou a camisa e se dirigiu ao corner. Lá, foi abraçado pelos companheiros e voltou exibindo, orgulhoso, a sua camisa ostentando o número dez.

Em meio a tanta alegria e comemoração, já não importava se havia tirado ou não a camisa, a euforia era tanta não importava essa penalidade tão estupida. O árbitro da partida, o americano de origem marroquina Ismail Elfath, chegou sorrindo, cumprimentou Aboubackar e aplicou os cartões: primeiro o amarelo e, em seguir, o vermelho. O jogador saiu de campo sorrindo, aplaudido pela torcida e numa alegria incontida. Eu nunca havia visto uma expulsão tão injusta e tão bonita.

 Aboubackar já havia marcado um belo gol nesta copa, o segundo gol de Camarões contra a Sérvia, onde ele fez um gol encobrindo sutilmente o goleiro. O jogador camaronês, de 30 anos, está em sua segunda copa, tendo vindo ao Brasil em 2014. Pela seleção de Camarões, marcou 35 gols em 91 jogos.

A valentia e a alegria de Aboubackar foram uma ducha de água fria no entusiasmo dos torcedores brasileiros. Embora não valesse rigorosamente nada, pois a seleção brasileira já estava classificada para a próxima fase, a derrota tomou ares de alerta e de preocupação.

Até então, desde a estreia vitoriosa contra a Sérvia quanto a vitória suada contra a Suíça, o time brasileiro era julgado superior e franco favorito. Agora, dúvidas pairam sobre o time e sobre a estratégia adotada pelo técnico Tite.

Entendo pouco de futebol. Li muito desde sempre sobre o esporte bretão e sobre a vitoriosa história da seleção brasileira, o bastante para saber coisas importantes de sua história, desde os tempos de Friedenreich até a Campanha do Catar. Posso citar jogos que não vi, como o segundo tempo da final de 1950 os jogos de Garrincha e equipe nos gramados do Chile.

Como observador direto, acompanhei o fantástico time de 70, fiquei perplexo com o massacre do Sarriá, adorei o time da Famiglia Scolari de 2002 e me decepcionei com o 7a1. (me explicando: sei suportar derrotas. Afinal, torço para o Athletico Paranaense, time que me dá algumas alegrias e muitos vice-campeonatos).

O que me decepciona com o 7a1 foi que não purgamos a derrota, não crescemos, não quisemos mudar a estrutura de nosso futebol. É uma dor ver um país futebolisticamente tão poderoso e tão colonizado, mero fornecedor de pé-de-obra para as metrópoles do futebol mundial, com diz mestre Juca Kfouri. Onde somos uma potência, escolhemos continuar a ser colonizados. Diz muito sobre quem somos.

Por isso, não fiquei triste com o gol de Abubackar e a derrota para Camarões. Perder faz parte do jogo. E é só isso, um jogo. Que é, em si muito legal. O futebol é um esporte que todos podem jogar, e em qualquer lugar. É um esporte pré-industrial, e não um esporte industrial como o vôlei e o basquete, onde as equipes jogam compactas como máquinas. O futebol é mais anárquico, mais imprevisível, em que você pode ganhar o jogo numa só jogada. Onde o fraco pode vencer o poderoso algumas vezes.

 Portanto, saúdo a alegria e o heroísmo de Vincent Aboubackar, que venceu e tirou a camisa, mesmo sabendo que seria expulso. Minutos antes, ele havia tomado um cartão amarelo lá atrás, como um bom operário da bola, protegendo sua defesa dos impetuosos e pouco objetivos reservas brasileiros. Instantes depois, ele era o herói que sacudia o estádio, um herói que castiga a arrogância canarinho. Um herói improvável num mundo tão improvável. Esta é a magia do futebol.

Uma magia a que mesmo os muitos de nós que andam tão céticos com essa magia, nos curvamos e ficamos alegres. Se existem os deuses do futebol, eles adoram umas boas traquinagens. E de rir muito. Adoro. 

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