Ontem fez muito calor, e os insetos revoavam pela casa e
pelo jardim. Ao longe, trovoadas e uma lua pálida prenunciavam a chuva que
viria. No ar abafado, os besouros voavam, com seu jeito desengonçado. Diversos tipos
de besouros, muitos besouros.
Dizem os entomologistas que o tempo presente não é a Idade
do Homem, e sim a Idade do Besouro. Eles são o gênero mais comum, com maior
quantidade de espécies. Um desses entomólogos, especializados em besouros,
chegou a dizer: “Deus, se ele existe, tem
uma especial predileção pelos besouros”.
Pois ontem à noite em meu jardim os besouros voavam. As lagartixas,
esses seres mesozóicos, saiam de seus esconderijos para rodear as lâmpadas do
jardim. Quando retornavam a seus esconderijos, estavam com a barriga preta de
insetos. Todos eles: moscas, mariposas, formigas, vespas. E besouros.
Hoje de manhã, quando fui ao jardim, pude ver um desses
besouros. Deitado de costas, o belo coleóptero jazia de costas no piso frio da
varanda. Algumas formigas tentavam tirar alguma vantagem: pegar um pedaço de
pata, de antena, tentar carrega-lo, qualquer coisa. Tinham muita pressa as
formigas. O besouro, morto, parecia que estava com uma as patinhas levantadas
como se pedisse socorro. Não existe socorro para besouros que caem de costas.
Ao ver o espetáculo da natureza e sua faina, comecei a me
lembrar dos nossos tempos, quentes e abafados. Nas pessoas que não olham para
os lados. O pobre besouro ali estendido e prestes a ser esquartejado pelas formigas
éramos nós.
O outro está sempre errado. Ao outro não perdoamos a cor partidária,
suas crenças, sua sexualidade. Não perdoamos a cor de sua pele, o jeito de seus
cabelos, a maneira de se vestir. Não perdoamos o que dizem, o que cantam, o que
escrevem. Um novo tempo de perseguições e proibições parece se avizinhar.
São noites quentes, como a noite de São Bartolomeu, a noite
dos Cristais, a noite das Facas Longas. Nas noites longas e quentes os homens
saem para matar os seus diferentes. A noite quente prenuncia a chuva.
Séculos de aprendizado com estas barbaridades não parecem
comover os novos perseguidores. A moralidade surge como desculpa para novas
imoralidades. As figuras públicas se escondem sob o véu da moralidade para
proibir.
A velha Europa aprendeu no passado que perseguições e intolerância
geram somente mais perseguição e intolerância. Hoje, todas estas lições parecem
esquecidas. O ódio surge da intolerância. E aí vem a perseguição, a ameaça. O que
o outro é não me ameaça. O que me ameaça é impedir o outro de ser. Se impedem o
outro, logo depois vão impedir a mim.
O avanço das ideias intolerantes preocupa. Hoje, sabemos
como começa e temos uma ideia de como termina. As noites quentes prenunciam
chuva. As chuvas terminam com muitos insetos mortos no chão, devorados pelas
formigas.
Parei por aí. Tenho muita coisa para fazer. Hoje o dia amanheceu
de chuva e frio. Tenho muitos besouros para varrer no chão. É um dia cinzento e
triste esse.
Jeff, costumo a gostar dos seus textos, mas esse acho que foi o que mais gostei! Obrigada por compartilhar.
ResponderExcluirPuxa, obrigado, Isis!! Bom saber!
ResponderExcluirBelo texto! Gostei especialmente de "Não existe socorro para besouros que caem de costas". Abraço, Jeff!
ResponderExcluirPois não é? estes dias eu peguei um besouro de costas e o virei...depois de manhã, quando acordei ele estava mortinho no me piso...e de costas! vá entender!
ExcluirMuito Obrigado, meu querido!!