Cartum de Renato Machado |
Quantos e quantos bytes se gastaram (e se gastarão ainda)
nestes dias em que em Cuba se preparam as exéquias de Fidel Castro?
De um lado, para muitos, ele é o grande líder da mítica
Revolução Cubana, que embalou os sonhos de toda uma geração de
latino-americanos. Inclusive os meus. Fidel foi o herói da igualdade e da
solidariedade internacional, o camarada que enfrentou (e nunca se dobrou) ao
Império. Que desafiou e sobreviveu a onze presidentes americanos. O libertador
de Angola e o homem que derrotou o Apartheid e possibilitou Mandela e a África
do Sul moderna.
De outro lado, para muitos, aparece a figura do ditador, do
déspota, do autocrata. Neste relato, alguns o filiam a Stálin e Pol Pot, assim
como a Hitler e Mussolini. Este é o relato da Cuba do paredón, da perseguição,
prisão e tortura de inimigos políticos, o perseguidor de artistas, gays e
deficientes.
Quem é Fidel? Perguntam-se todos. O que ele significa? Por que
desperta tanto amor e tanto ódio?
Não tenho a resposta, nem sei se alguém a tem. Eduardo
Galeano tem a dele (aqui). Para a Direita Raivosa brasileira, ver aqui. A
melhor definição de tudo é o Cartum de Renato Machado quem faz mais jus à
figura do comandante. Nem Céu nem inferno, mas a História, este é o lugar (veja
o original aqui). A História o absolverá? Somente com o passar do tempo e com
olhos menos apaixonados poderemos chegar a uma apreciação sincera da atuação do
comandante.
Entretanto, esta discussão sobre Fidel não é somente uma
discussão sobre Fidel. É uma discussão sobre nós, aqui e agora. Sobre o Brasil
e seu momento atual. Vejo meus companheiros de esquerda, eu incluso, a defender
apaixonadamente Fidel, relativizando o lado amargo da Revolução Cubana. De
fato, “gentlemans” não ganham revoluções. É preciso ter estomago para tomar
algumas medidas. Não sei se eu as teria ou não, não posso julgar moralmente uma
decisão deste tipo cinquenta nos depois, confortavelmente sentado em minha
mesa.
Na maior parte das questões, um atenuante óbvio se anuncia: tratava-se
da Guerra Fria. Se houve barbaridades daquele lado (o bloco Socialista), do
outro lado (o “nosso” bloco capitalista) quantas barbaridades também não foram
cometidas? Se ficarmos só na América Latina temos os exemplos da política do
porrete, quando os americanos tiravam do poder quem, do campo da esquerda,
ameaçasse suas políticas. Podia ser através de golpes de prepostos ou
intervenção militar direta. Exemplos abundam. Pra citar dois: a deposição de Jacobo
Arbenz Guzman, na Guatemala em 1954, o golpe e a deposição do esquerdista Juan Bosch
na República Dominicana, que culminou com a invasão estadunidense de 1965 (com
participação da Ditadura Brasileira inclusive). Nesta lista, nem entrei na América
do Sul....
O Caribe no pós-guerra era um arquipélago de ditaduras sanguinárias,
protegidas por Washington. Como não esquecer da Nicarágua de Somoza (1934 –
1979), da República Dominicana de Trujillo (1931-1961), do Haiti de Papa Doc
(1957-1971)?
Assim quando, do nada (para a imprensa americana) um grupo
de jovens barbudos desafia e vence um destes ditadores, o não menos sanguinário
Fulgêncio Batista (1933-1959), estava configurado o mito. Sim, era possível.
Cuba sofre de um processo de atração e repulsão por seu
vizinho do Norte desde sua independência, em 1898. Desde a sangrenta guerra da independência,
a partir da insurreição liderada pelo também mítico José Marti (El hombre sincero de donde crece la palma!),
os Estados Unidos frequentemente tomaram um papel que não lhes cabia na
condução da ilha. A ocupação militar durou de 1891 a 1903. É deste ano a Emenda
Platt, que se estenderia até o governo de Fulgêncio Batista, em 1933. Esta emenda
dava o direito de os Estados Unidos intervir em Cuba sob pretextos diversos, limitando
na prática a independência do país. Desta forma, a Revolução Cubana pode ser
entendida neste contexto secular como uma reação à dominação americana e uma segunda
etapa do processo de independência do país.
O embargo americano também explica diversas atitudes tomadas
por Cuba desde os anos 60. A resistência torna-se seu mote, e a resistência a
qualquer preço. Depois do colapso da URSS em 1991 e mesmo antes, a situação econômica
piora. Mas a pequena ilha resiste. O embargo gera uma porção de problemas e uma
justificativa bastante plausível ao governo cubano para tomar medidas duras. Um
duro embargo que já dura mais de 50 anos.
Por outro, vejo meus amigos de direita com um relato que é
verdade: sim, o regime cubano matou pessoas. Os fins justificam os meios? Não
posso responder que sim. Mas entender o que aconteceu dentro do espectro de seu
tempo ajuda a entender algumas decisões.
O discurso da Direita está sendo usado, no entanto, para culpar a atual esquerda brasileira. Acho isso injusto e prejudicial ao bom debate. A esquerda
já fez uma boa autocrítica desta e de outras práticas do passado. Não se pode
achar que Stálin e Pol Pot sejam nossos camaradas. Meus nunca foram.
Hoje, a esquerda brasileira – e é só por ela que posso falar
- é mais democrática e legalista que a
direita. Falo isso com muito orgulho. Durante o golpe, embora esperneássemos, o
poder foi entregue sem nenhuma resistência, dentro da lei, embora não houvesse concordância
com sua interpretação.
Por outro lado, a direita sempre abusou da lei (A lei? Ora,
a lei!). A direita burra vive propondo -
hoje! Agora! Neste instante! - um
retorno ao passado, um passado violento que nos remete ao mundo antes da Revolução
Francesa, antes da cidadania e dos direitos do homem. Um mundo de lei e de
ordem. “Direitos Humanos para humanos
direitos”. Mas lei e ordem para quem, cara pálida? Continuamos a mesma política
do Império e da Colônia, admitindo tortura e morte sem julgamento para os mais
pobres, que não por acaso são pretos e índios.
A direita mais “light” vive fazendo armadilhas e mudando as
leis. Para quem está reclamando das anistias ao caixa dois e as outras
patifarias que o congresso está fazendo: lembrem-se da corrupção que foram os
cinco anos para Sarney e a reeleição de Fernando Henrique. O prof. Luiz Felipe
Alencastro há muitos anos atrás denunciou esse golpismo “light” através das
mudanças constitucionais (aqui).
Falar de Fidel, hoje, é falar do Brasil. É isso que nossos
amigos de direita querem nos dizer é: “Isso
não serve para nós, não está vendo? ”. “É
isto o que você quer para o Brasil? ”, como diziam no tempo da Ditadura. Não,
isso não nos serve. Por exemplo, não compactuo com tortura e assassinato sem
julgamento, como fez o Exército Brasileiro nos anos 70 (ver o livro de Elio
Gaspari, “A Ditadura Escancarada”). Atrocidades
que o Exército Brasileiro nunca admitiu, o que é mais vergonhoso ainda. Não
compactuo com o genocídio de pretos e índios que as policias militares e
diversas milícias vem fazendo no campo e nas cidades.
Não compactuo com políticas de discriminação social,
religiosa e qualquer outra. Se Fidel tratou de forma abusiva os gays (los enfermitos), ele está numa companhia
que não é boa, mas numerosa. A prática de castração química, prisão e morte foi
muito comum no passado (veja os exemplos na Inglaterra e nos Estados Unidos, e
mesmo aqui no Brasil) e ainda o é no presente em vários países. Isso tem que
ser posto em sua correta dimensão: estava errado e tem que ser denunciado. Agora,
eu acho estranho que muitos que reclamam da “Ditadura Gayzista” estejam agora
se compadecendo de nossos companheiros homossexuais. Cubanos.
Não gostam de Fidel? Tudo bem. Não gostam de sua prática política?
Faz parte do jogo. Eu acho Fidel uma grande liderança e uma pessoa importante
na luta dos povos por mais igualdade. Ele é incoerente e cometeu erros, sim. Ninguém
é coerente o tempo todo. Ele não é candidato a Santo. Mas não é possível ignorar
que sua luta foi importante na melhoria de vida e na redução das desigualdades
em Cuba e na América Latina. Não é possível ignorar seu papel no fim do
Apartheid. Não é possível ignorar as conquistas da Medicina cubana (veja um
depoimento do insuspeito jornalista Jorge Pontual, da Globonews, aqui).
Cuba tem os desafios dela (ver aqui), nós temos os nossos.
Nós nunca enfrentamos, com exceção dos governos petistas, o desafio de superar
nossas desigualdades. Vivemos numa sociedade estamental e extremamente
desigual. Nossas classes dominantes nunca quiseram expandir o ensino e a
cidadania. Pelo contrário, nos enfurnamos em condomínios fechados e depois
reclamamos que a rua está tomada por bandidos. Não estamos nem aí para uma
sociedade em que a polícia nos trate todos como iguais. Somos coniventes com a tortura
nas delegacias e com a morte de jovens, pretos, índios. Somos lenientes com a
cultura do estupro, expondo nossas mulheres a situações inconcebíveis. Temos aversão
e permitimos que as pessoas LGBT sofram com a violência e o assassinato.
E depois, refestelados no sofá da casa assistindo à
televisão ou, então, na tela do computador ou do telefone, ficamos nos
horrorizando com estas mesmas coisas. Mas no país dos outros.
Enquanto isso, Fidel entra na História pela porta da frente.
Gosto da sua lucidez. Sinceramente, penso que Fidel, como todo grande líder, tem prós e contras em suas ações, mas isso é apenas o equilíbrio da balança.
ResponderExcluirObrigado, Edson, mas não existe lucidez...existe mesmo é confusão, principalmente na minha cabeça. Eu só acho que estão usando o cadáver do Fidel pra acuar a esquerda num momento crucial da luta politica...
ResponderExcluirA esquerda é sempre perdedora. Por dois motivos: Ninguém vence a força do dinheiro e da exploração do homem pelo homem.Se isso fosse possivel, as religioes, em tese, teriam conseguido. Dá, pra amenizar, ah isso dá.
ResponderExcluirTanto quanto estas, as esquerdas se corrompem quando têm oportunidade politica de agir. É isso que vemos no Brasil, que, nos ultimos anos, foi completamente cancerado por uma corrupção generalizada orquestrada pelo PT.