quarta-feira, 29 de novembro de 2017

CRONICAS DO DUTO - OS OITO DE NAVARONE (3)

Tonho e Melancia descendo o morro em São Jose dos Campos. Melancia, pra variar, fazendo graça montando a mula

Quase todas as vezes que íamos fazer alguma investigação geotécnica nesta obra do duto, precisávamos colocar as ferramentas de sondagem no alto de um morro, em geral muito íngreme. Colocar as coisas a pé era penoso, e já estavam todos fatigados ao final da campanha.

Nosso colega Gilberto Marchioro tomou uma atitude ousada, como é do seu feitio, e contratou algumas mulas, com cangalha e tudo, pra auxiliar na empreitada. Quando vi a mula com o material, tive certeza: era uma operação de guerra.

Em várias situações, depois de verificarmos que o terreno era inacessível, procurávamos na região algum morador que tivesse mulas com cangalha: sempre tinha um.

Certa vez, procurávamos por uma mula numa estradinha perdida de um canto perdido de são Jose dos campos. Achamos um sitio num lugar muito bonito, cheio de mata e de água. Veio nos receber um dos filhos da dona, que soubemos depois ser pedreiro. Quando conversamos sobre a mula, ele disse que tinha uma, mas não sabia botar cangalha. Nós também não, e tínhamos mais o que fazer. Recusamos a oferta.

No entanto, ao saber que precisávamos subir o morro levando a sonda, o cara se ofereceu: “eu e meus irmãos levamos isso pra vocês. Somos em oito”. “Oito, aqui?” perguntamos. Ao receber a confirmação, ficamos espantados com tanta gente, mas era difícil recusar uma oferta daquela: oito pessoas a ajudar a carregar nossas equipagens todas, era quase o paraíso.

À noite, ficamos comentando aquilo: falávamos sobre “os oito do sítio”, ríamos muito da situação. “Parece uma operação de guerra”, alguém completou. “ah, já sei, os oito de Navarone!”. E pronto, os oito do sitio ficaram conhecidos como “os Oito de Navarone”.

Acontece que no dia seguinte eu fui pra outro lugar, e não acompanhei a instalação do equipamento de sondagem no alto do morro. Quando, de noite, encontrei o meu amigo Rômulo, que estivera lá naquela frente  de trabalho ajudando a instalar os equipamentos, perguntei dos Oito de Navarone. Ele fez uma cara de sacana, abriu uma risada, e me respondeu: “dos oito, só sobrou um!”. “Como assim?”, quis saber, intrigado.

Pois é”, explicou ele, “quando o pessoal chegou aqui e viu a quantidade de coisa que tinha pra subir o morro, desistiram. Só ficou um deles, o mais velho, que era pedreiro em São Jose dos campos. Ele sozinho nos ajudou a levar as coisas. Ajudou muito”.

Era muita coisa mesmo. E o pessoal era tudo gente de cidade, pouco acostumados com trabalho bruto, caiu fora logo que viu. Mas a piada ficou: “Rômulo, e os oito de Navarone?” “Só sobrou um!” dizia ele, rindo e mostrando com os dedos quantos eram e quantos sobraram.

O trabalho era realmente bruto, quase uma operação de guerra, cruel e sem piedade. Coisa de gente doida mesmo. Ou trabalho pra mula, com cangalha e tudo. Até o pessoal de Navarone, dos oito só sobrou um. Coisa besta, sô!

(Estas crônicas eu escrevi quando trabalhava num projeto de gasoduto entre Atibaia e Sao José dos Campos, em São Paulo, no final de 2009.)

(publicado em 2009 pela primeira vez aqui)

domingo, 26 de novembro de 2017

CRÔNICAS DO DUTO (2) - FITZCARRALDO

Ao longo do eixo do duto, a corrente humana para levar os equipamentos para o local de sondagem
Escavocar o solo para colocar um duto não é tarefa fácil, em nenhum lugar do mundo. É coisa pra cachorro grande.  Tipo a Petrobras. Existem muitos serviços que exigem muito, mas muito esforço mesmo. Acompanhei na semana passada a retirada de duas sondas percussivas de um local ao longo da faixa que foi uma epopeia.
Pra começar, o terreno era muito íngreme e escarpado. Os morros muito altos, quase tudo com o topo na cota 1000 m (acima do mar). Não havia estradas ou caminhos que facilitassem a entrada destes equipamentos, cada um dos quais pesa mais de 200 quilos de ferragem, mais motores, mangueiras, chaves e outros equipamentos. Só um destes equipamentos, o percussor, um cilindro de ferro com 25 cm de diâmetro mais uma haste de 80 cm, pesa 65 quilos. Carinhosamente apelidado “Jorginho” pelos sondadores, é individualmente a peça mais pesada e difícil de carregar.
Mas os bravos pernambucanos da equipe de sondagem conseguiram fazer com que tais equipamentos descessem a tal da encosta. Pra descer, descíamos segurando em cordas. Pra subir, uma vez encerrado o trabalho, convocamos uma turma de mais de 15 pessoas exclusivamente pra tirar as ferragens da grota.
Com cordas e muita vontade, as pecas foram amarradas e içadas uma a uma vertente após vertente. Eram duas vertentes, ambas muito íngremes. Os equipamentos, amarrados uns nos outros, muitas vezes pesando cem quilos ou mais.
Foram dispostas cerca de vinte pessoas, a cada patamar da encosta, pra ajudar a puxar os equipamentos. Vistos de longe, os uniformes azuis e cinzas faziam uma linha pontilhada ao longo do morro. Parecia uma cena de Fitzcarraldo, filme do diretor Werner Herzog, onde uma multidão de trabalhadores puxa um enorme barco morro acima na Amazônia.
O pessoal puxou as cordas rindo e brincando uns com os outros, parecendo uma grande brincadeira. Uma alegria que nos contagiou a todos, e fez com que o trabalho fosse menos penoso. Impressionante mesmo.

(Estas crônicas eu escrevi quando trabalhava num projeto de gasoduto entre Atibaia e Sao José dos Campos, em São Paulo, no final de 2009.)

(publicado em 2009 pela primeira vez aqui)

quarta-feira, 15 de novembro de 2017

CRONICAS DO DUTO - A ENGENHEIRA


(a faixa verde-clara no centro da foto é o duto cruzando os mares de morros)

A engenheira chegou no projeto. Alta, linda, loura, formada na Unicamp e com especialização em segurança do trabalho. Maravilhosa. Uniforme azul impecável, botas novas. Sequer desceu da caminhonete pra cumprimentar: estendia o braço pela janela, e exibia um pálido sorriso.
No primeiro local de visitação, nem quis descer ao local onde estávamos fazendo as sondagens: tínhamos que descer segurando em cordas. Reclamou dos insetos, de uma abelha e de uma joaninha que pousou em seu braço. Quando saímos do local, disse que as curvas da estrada faziam-na enjoar.
No segundo local, até que foi ver o pessoal trabalhando. Aí reparou que ali não existia um banheiro químico. Nosso encarregado, o Siqueira, pernambucano de olhos calmos, respondeu-lhe que ali, naquele tipo de obra, um banheiro químico era um severo impedimento ao trabalho. Nosso deslocamento era constante de um ponto a outro. Levar um banheiro químico para aqueles lugares era um ônus pesado demais para nossos funcionários. Quase como levar fogão de seis bocas num camping.
Então, a engenheira reparou que os funcionários estavam sem o protetor auricular. Novamente, com seu jeito calmo, Siqueira explicou que ali, na mata, não haviam ruídos que pudessem incomodar os funcionários. O bater do martelete de percussão não era continuado nem tinha um som exagerado.
Eu quis mostrar a ela as obras que estava vistoriando. Ela me deixou com o outro fiscal e voltou para a caminhonete. Voltarmos cerca de 40 minutos depois, e a encontramos deitada no banco da caminhonete, ar condicionado, dormindo o sono dos justos.
Disseram-me que ela tinha vindo pra ser chefe da fiscalização do projeto. Não sou nenhum especialista no assunto, mas é mais uma pessoa errada no lugar errado. Depois de quase dez anos sem contratar, as empresas estatais estão num serio dilema. Contratam recém-formados, mas por falta de quadros mais antigos, estes mal entram e já pegam cargos de chefia. O que essa menina vai chefiar?
Mal ela sabia, mas naquele bando de peões que ela viu operando a sonda havia Cícero, que já ganhou dinheiro compondo músicas. Havia o Melancia, contador de causos e anedotas de animar qualquer roda. E havia o Tonho, grande e forte como um urso, suave e simpático como uma criança.
Para além de qualquer projeto estão as pessoas.
As pessoas fazem projetos, constroem dutos, fazem leis, jogam futebol, dirigem grandes corporações, constroem ou destroem países inteiros. Perceber isso é crucial para qualquer empreendimento humano.
Será que a engenheira sabe disso? Pode até saber academicamente, mas tem o saber profundo, aquele que vem com o bater do coração e com o pulsar da existência?
Tomara que ela construa muitas coisas em sua vida profissional. Principalmente, tomara que ela veja, para além das obras prazos planilhas e cronogramas, aquele bando de gente boa e trabalhadora que está ali, fora do ar condicionado, fazendo concretamente o concreto de nossas vidas. Tomara.
(Estas crônicas eu escrevi quando trabalhava num projeto de gasoduto entre Atibaia e Sao José dos Campos, em São Paulo, no final de 2009.)

(publicado em 2009 pela primeira vez aqui)

sábado, 11 de novembro de 2017

O MINUTO DE BARBOSA



Aquilo foi pouco tempo, menos de um minuto. Gighia passou por Bigode no meio do campo e veio vindo. Uns dizem que Bigode ficou acovardado. Outros lembram ainda do tapa que Bigode levara há pouco de Obdulio Varela e não reagira. Time medroso. O cúmulo da covardia diante da  pátria de chuteiras. 

Gighia avança, Fontana o acompanha de longe, voltando de costas, sem dar combate. Barbosa começa a pular nervoso, de sobreaviso - saio ou não saio? Milhões de olhos o acompanham, os músculos se retesam, os olhos não perdem um lance da aproximação de Gighia, que avança.

De todos os lados os olhos ansiosos estavam pregados naquela cena que se desenrolava veloz, Gighia já está entrando na grande área conduzindo a bola de cabeça baixa como um búfalo furioso, toda perseguição parecia inútil. O Maracanã, com mais de sessenta milhões de pessoas, toda a população brasileira daquela época, assistia mudo Aparício Varela entrando na área.

Tempos modernos, agora não eram trinta e três, mas somente onze. Capazes de anular toda a República, como um dia abalaram o Império. Os uruguaios estão chegando. Gighia chega mais perto e desfere o chute. Barbosa tem pouco tempo. Prepara-se nervoso, retesa os músculos e salta. A bola resvala em seus dedos e sai pra escanteio. O Maracanã respira aliviado. O jogo continuava empatado.

Terminado o jogo, éramos os melhores do mundo. Aquele dia os milhões de pessoas que lotavam o Maracanã não viram Barbosa cabisbaixo buscar a bola do desempate uruguaio no fundo das redes. Não houveram os pulos de alegria que Gighia dava com o jogo virado. Não houve a festa celeste. Não houve lágrimas entre a torcida brasileira, nem choros convulsivos dentro e fora do gramado. E, principalmente, não houve Obdulio Varela levantando a taça como o Gumercindo Saraiva que finalmente amarrava seus cavalos no centro do Rio.

Se Barbosa não tivesse espalmado aquele chute, viveria uma vida de caras viradas, de palavras rudes, de recriminação, de silencio e esquecimento. Teria que viver explicando que não fora frango, que não havia caveira de burro enterrada debaixo de sua meta. Não, a bola enfiada por Gighia não passara por entre seus dedos com o resto de sua vida. O minuto que começara com o drible e a arrancada havia terminado.

Ghigia não marcara o gol, e agora o Maracanã agradecido aplaudiu os artilheiros. Encerrado o jogo, cartolas invadiriam o gramado, felizes. Afinal, agora eles seriam consagrados como responsáveis pela conquista, desde as goleadas contra Suécia e Espanha até àquele suado empate com o Uruguai, dentro do Maracanã lotado. Os cartolas todos foram posteriormente eleitos deputados federais, e fizeram brilhante carreira na política.

Canções foram compostas para louvar os artilheiros, seus salários foram melhorados. Um filme foi rodado com os gols da partida, mostrando as cenas de júbilo e entusiasmo da torcida. Era o primeiro campeonato do mundo de futebol conquistado pela seleção brasileira. E dentro de nossa casa! O filme com o jogo da final de 1950 passou nos cinemas de todo o País, e mostrou aos meninos a glória de vestir o uniforme branco da seleção brasileira.

Depois de ter com a ponta dos dedos espalmado o chute venenoso de Ghigia, segregado àquela estranha profissão de hunos, sempre pisando onde não nascia grama, Barbosa continuaria em silêncio sua sina de buscar bolas no fundo do gol.

(PUBLICADO AQUI PELA PRIMEIRA VEZ)