sábado, 24 de junho de 2017

EU NÃO AMO O BRASIL


legenda auto-explicativa (tirei daqui)
Eu não amo o Brasil. Por que deveria amá-lo?  
Houve uma época em que eu sinceramente acreditei no conto do Patriotismo. A época era outra. Eu também. Na escola cantávamos o Hino Nacional, sempre com medo de errar – afinal, era “amor eterno” ou “sonho intenso”? E aquele papo de “amor febril pelo Brasil? ”. Queriam por todo modo que fossemos todos febris e destemidos.
Além dos hinos, haviam os contos militares nos livros de história, contando anedotas como a da frase heroica de Caxias na ponte de Itororó, conclamando: “Quem for brasileiro que me siga!”.  Em todos os cantos havia o chamado a amar a Pátria, amar a bandeira, amar o hino. Por trás de tudo, na sala da Diretora, estava um general carrancudo numa foto.
Quantas vezes haviam concursos de redação com o tema patriotismo? Quantas bobagens não escrevemos contando que a cor de nossa bandeira eram os nossos recursos naturais (na verdade, o verde-amarelo eram as cores da Casa de Bragança!). Ou então dando exemplos históricos de patriotismo no Brasil, que recolhíamos em livros não muito rigorosos com a verdade histórica.
O patriotismo do tempo da Ditadura, no entanto, acabou-se que era doce quando a classe média não tinha mais como comprar fuscas ou passear em Buenos Aires e tomar uma cueca-cuela. A popularidade do governo militar e seus tecnocratas despencava na medida em que a economia vacilava. Entretanto, eu ainda não entendia aquilo tudo. Venho de uma família muito nacionalista, tanto de direita quanto de esquerda. O nacionalismo era o que nos unia. Por vezes, mesmo já me considerando de esquerda, eu me espantava, quando era rapaz, com as pessoas que criticavam o patriotismo ou que criticavam o Brasil. E o Amor Febril?
Com o passar do tempo, aquelas historias militares e aquele verde-amarelismo tosco foram sendo substituídos por sentimentos diferentes. Entendi, no começo da juventude, lutando pelas Eleições Diretas para presidente (DIRETAS JÁ!), que eu não amava mais o Brasil varonil das canções militares, aquelas que nos diziam que devíamos viver pela Pátria e morrer sem razão.
Como posso amar esse pais que se pinta todo de verde-amarelo somente às vésperas de uma Copa do Mundo, com uma bandeirinha tímida na porta das casas? Como amar o pais que no passado tinha como lema que se devia ama-lo ou então ir embora – “Brasil ame-o ou deixe-o”?
Que amor é esse?
Hoje, eu entendo este amor diferente. Eu não amo o Brasil dos manuais de Patriotismo, aquele que diz que patriotismo é amar e respeitar os símbolos: bandeira, brasão, hino. O patriotismo brasileiro é sui-generis: você tem que amar uma pátria que não te representa? Que no passado escravizou nossos avós negros e índios? Como amar um pais hoje que não respeita os direitos dos cidadãos mais pobres? Que não garante liberdade, pão e terra para todos? Como falar que o brasileiro não tem patriotismo se a Pátria ela mesma não tem brasileirismo?
Como amar um país cindido em dois, um Brasil branco e rico e o outro, preto e pobre? Um país onde os trabalhadores mais humildes sofrem com a exploração de mão de obra, com falta de acesso ao estudo, sem perspectiva de melhorar sua vida?
Eu não amo o Brasil. Eu amo os brasileiros, aqueles que extraem algum sentido do lugar sem sentido onde vivem.
Por outro lado, não se ama um país com o qual não temos laço – de família, de história, de vida. O patriotismo tal como inventado lá atrás na Revolução Francesa tinha este sentido – proteger a nós e os nossos dos “feroces soldats” da tirania. Na Primeira Guerra Mundial, em nome deste tal patriotismo, milhões de pessoas morreram como bois no matadouro pela conquista de alguns metros de terreno, ou pela glória de algum general.
O nazismo e o fascismo também foram exemplos acabados de como fazer de pessoas honestas soldados ferozes e cruéis, as buchas de canhão do patriotismo. E assim, juntando os exemplos históricos que conhecemos, não há como não concordar com a famosa frase de Samuel Johnson (1709-1784): “o patriotismo é o último refúgio do canalha”.
Portanto, eu não amo o Brasil. Não amo seus símbolos. Acho um absurdo ficar falando de patriotismo sem cidadania. Um pais que teve escravos e não tem políticas de ações afirmativas decentes é um pais a se amar? Devemos amar o Brasil como as pessoas que pregam intervenção militar dizem? Felizmente para nós, tem um problema: os militares não amam a Pátria, amam seus empregos...
Hoje, muitos outros usam o Patriotismo para ações de ódio e de xenofobia. Se escudam em noções e conceitos antiquados (e fascistas) para dizer não ao outro, ao estrangeiro. Houve até a piada-pronta de um grupo que protestou na Avenida Paulista contra a imigração (ver aqui). Como disse um humorista de plantão, “no Brasil somente os Índios tem este direito. E ali na passeata não se viu índio nenhum”.
Eu amo as pessoas que eu amo, e isso não tem país. Hoje, posso dizer que tenho amigos pelo mundo. Eu amo minha terra não porque ela é minha terra, mas porque ali estão minhas raízes, minha família, meus amigos. Tudo isso e mais uma paisagenzinha bonita, tipo uma tarde de verão na Feira-mar, em Antonina, e está feito o estrago...
Patriotismo não. Sentimento do mundo sim. Ao Brasil, eu prefiro os brasileiros.

sexta-feira, 16 de junho de 2017

OS LANCEIROS NEGROS E A AGONIA DA DEMOCRACIA


O Deputado estadual Jefferson Fernandes (PT-RS), antes de ser preso pela Brigada Militar na desocupação violenta da Ocupação Lanceiros Negros, em Porto Alegre, nesta ultima quarta- feira.

Um dos sinais mais claros que as coisas estão mudando é a desfaçatez da violência. Como uma folha que amarelece de fora para dentro, a violência vem se instalando lentamente em nosso cotidiano. Como recentemente disse um artigo de Eliane Brum (ver aqui), é nas periferias do sistema que as pessoas primeiro se sentem à vontade para usar da violência sem nenhum receio ou pudor.
Uma evidência do final do mês de maio é o recente Massacre no Pará, quando nove homens e uma mulher foram mortos pela Polícia Militar em Pau D´Arco, a 867 km de Belém, quando resistiam a uma reintegração de posse (ver aqui). Os policiais chegaram a remover os corpos para evitar a perícia (ver aqui). Um mês antes, em abril, fazendeiros balearam índios da etnia Gamela do povoado de Bahias, em Viana (MA), tendo decepado a mão de um dos indígenas, Aldelir Ribeiro, de 37 anos (ver aqui). Essas chacinas covardes, uma delas perpetradas por supostos “Agentes da Lei”, entrou e saiu no noticiário como se se tratasse de um longínquo confronto no Afeganistão ou na Síria.
Esta semana, outro absurdo, desta vez em área urbana. A ocupação Lanceiros Negros, no centro de Porto Alegre, sofreu na noite desta ultima quarta-feira uma desocupação extremamente violenta, com uma ação excessiva da Brigada Militar. (Para quem não conhece o Rio Grande do Sul, Brigada Militar é o nome da PM no estado; o nome "Brigada" bem lembra a sua origem, como as demais PMs, como forças militares auxiliares ao Exército e à serviço das oligarquias estaduais.)
Na noite fria e chuvosa em Porto Alegre, véspera de feriado de Corpus Christi, usando bombas de efeito imoral, a Brigada Militar que realizava a desocupação chegou a prender o deputado estadual Jefferson Fernandes (PT-RS), presidente da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa Gaúcha. Três horas depois, quando os brigadianos se deram conta da bobagem que fizeram, o deputado foi liberado. As mulheres da ocupação presas junto com ele, no entanto, continuaram detidas.
Enquanto isso, a Brigada atirava pelas janelas sofás, objetos de cozinha e até travesseiros e roupas de cama, conforme denunciou a reportagem ao vivo dos Jornalistas Livres. Retiradas a força do prédio, as famílias desalojadas estão precariamente alojadas num ginásio de Porto Alegre, sem condições de higiene ou de cozinhar.
Aliás, boa parte das 70 famílias que desde 2015 ocupavam o prédio histórico abandonado no centro de Porto Alegre vieram de uma outra zona de risco, a saber, de risco de enchente. Na Ocupação Lanceiros Negros, os moradores fizeram um experimento de moradia baseado na auto-gestão. No interior do prédio, que pertencia ao Estado e estava desocupado há mais de 10 anos, as famílias limparam tudo e montaram uma biblioteca, estabeleceram regras de convivência, se integraram com dignidade e respeito à vida do bairro.
A reintegração de posse ocorreu dentro da legalidade, com estamos vendo no Brasil desde o golpe de 2016. A Juiza Aline de Santos Guaranha ordenou “o cumprimento da ordem aos feriados e finais de semana e fora do horário de expediente, se necessário, evitando o máximo possível o transtorno ao trânsito de veículos e funcionamento habitual da cidade”. Dane-se o transtorno causado aos ocupantes. O importante é não perturbar a paz dos “cidadãos de bem”.
Os “cidadãos de bem”, aliás, não se furtaram a inundar de ódio as páginas da internet, clamando pelo direito de propriedade e pregando punições aos “vagabundos” e “parasitas”. Como se o direito de propriedade não fosse extensivo aos ocupantes, que precisam atuar nas franjas da lei para ter um local para morar. Para os  "cidadãos de bem" este direito é garantido sem restrições pelo Estado. No entanto, a propriedade privada pura e simples não é uma garantia da “Constituição Cidadã” que os golpistas querem a todo custo rasgar. Ela está justamente subordinada à sua função social. Não se tem o direito ilimitado de propriedade, portanto, se ela não atende ao conjunto da sociedade (ver mais aqui). Num estado que não cumpre seu papel de facilitar acesso a moradia, a Ocupação Lanceiros Negros, que fez da invasão sua arma de luta está coberta de razão.
Como contraponto ao Sistema que os obriga a transitar nas franjas, o nome "Lanceiros Negros" é excelente. Os Lanceiros Negros foram um grupo de combate da Revolução Farroupilha (ver mais aqui). Formado por ex-escravos e negros libertos, foi uma das forças de combate mais terríveis do Exército Farrapo em suas batalhas contra o Exército Imperial. O próprio Garibaldi, em suas Memórias, cita que a bravura dos Lanceiros Negros não poucas vezes o inspirou em combate. Traídos pelos próprios comandantes Farrapos, os Lanceiros Negros foram entregues desarmados às forças Imperiais, que os massacraram ao final de 1844, no denominado Massacre de Porongos. Os Lanceiros em sua maioria foram mortos e seus sobreviventes foram reescravizados. Afinal, era extremamente incômodo para a elite branca um batalhão de soldados negros e livres num país que condenava os negros à escravidão. O fim dos Lanceiros Negros foi o último obstáculo à pacificação da Província, pondo fim à Revolução Farroupilha.
Chegamos aos Lanceiros Negros modernos. Sem garantia de função social da propriedade, confinados a zonas de riscos de enchentes, são brutalmente retirados numa noite fria e chuvosa pela ação desproporcional da Brigada Militar. Homens, mulheres e crianças, como os lanceiros traídos em Porongos, se retiram, numa fria madrugada de junho, para um abrigo provisório na periferia de Porto Alegre.
Não houve sequer respeito pelo deputado que, com a força de seu mandato, tentava evitar toda a confusão. Atacado com gás de pimenta, chutado, espancado e finalmente preso pela Brigada, como numa afronta aos seus eleitores. Diga-se de passagem que um dos momentos mais civilizados da Republica Romana foi quando se admitiu que a pessoa do Tribuno da Plebe, que defendia os interesses da massa do cidadão, era por isso mesmo inviolável. A Brigada Militar, em pleno século XXI rasga a lei que jura defender atacando (este sim!) um digno representante do povo para defender um vago direito à propriedade.
O Governador, esse pobre coitado, diz que está tudo certo com a Brigada, diz que eles cumpriram o seu papel. Mas, quem é responsável pela extrema violência, se os brigadianos não são mais do que um instrumento do Estado, se não ele? Este é o papel de um governador, afinal eleito pelo povo? Uma repórter governista veste a carapuça e escreve que “cumprir ordem de despejo em uma noite de inverno e algemar um deputado estadual foram equívocos” (ver aqui).  O Governo se defende e diz que a oposição fez isso para “angariar dividendos políticos e midiáticos”. Será que foi tudo combinado, como numa sessão sadomasô? Um bate e o outro apanha, é isso?
 A folha verde e viçosa da Democracia vai se amarelando. Pelas bordas, lentamente. Ora é um mendigo, um noiado de crack. Depois, são os sem-terra, os índios. Não nos importamos com isso, moram longe, são todos vagabundos e parasitas. A folha verde vai se amarelando, até cair. Na hora em que baterem na nossa porta para nos levarem, como fizeram com tantos outros nas ditaduras do passado recente, não haverá mais por quem chorar.

(Esta postagem é dedicada à minha amiga e companheira Maria José, que me apresentou ao mundo ao sul do rio Mampituba, que tanto gosto)

domingo, 11 de junho de 2017

A MORTE DE BATMAN

Adam West, em foto de 1999, sentado sobre o bat-móvel


Entre tantas perdas que tivemos recentemente, uma delas me bateu tanto que senti, depois de algum tempo, vontade de escrever algumas maltraçadas linhas. Trata-se da morte de Adam West, o icônico Batman do seriado dos anos 60.
Com a perda de West, senti que muito de meu passado está ficando irremediavelmente distante. As tardes em frente da velha – e grande -  TV preto e branco, vendo assustado as encrencas em que se metiam Batman e Robin, lutando contra inimigos não menos icônicos como o Charada, o Pinguim, o Coringa e a não menos temível – e por isso mesmo adorável - Mulher-gato são tardes cada vez mais distantes e apagadas na memória.
Adam West vestiu um Batman da contracultura, um Batman que vinha direto dos gibis, com muita meta-linguagem e com um cenário super-colorido e sua linguagem de socos onomatopaicos – os formidáveis Crash, Pow, Thud...
Era um Batman juvenil e alegre, bem distante daquele Batman introspectivo e sombrio que a série “Cavaleiro das Trevas” viria a impor a partir dos anos 80. Um Batman com falhas, um vingador obsessivo, um ser transtornado e perturbado.
Como não amar aquele imperturbável ricaço que descia por uma passagem secreta para seu esconderijo secreto para lutar contra o mal? Quem nunca quis ter uma segunda identidade e uma batcaverna para se esconder e trabalhar nas mais incríveis ferramentas? Usar o cinto de utilidades, tão kitsch quanto incrível, inventar poções borbulhantes em tubos de ensaio gigantes ou dirigir o bat-móvel ou o batplano pelas ruas e pelos céus de Gotham City?
Santa ingenuidade, Batman! Doce ingenuidade, Batman, embalada em frente da TV preto e branco da sala de estar...
Hoje em dia, em que vivemos nesta lamentável gangorra de emoções ruins e golpes baixos, temos juízes e procuradores que se travestem de Batman. Querem ser justiceiros, querem fazer a diferença como se justiceiros fossem, e não trabalhadores da justiça. Que fazem seu serviço como se dirigissem batmóveis e enfrentassem Coringas ou Charadas, quando o que na verdade enfrentam são os temers, os jucás, os renans, os aécios, bandidos mais espertos e muito mais barra-pesada.
E a justiça? Batman podia pegar seu bat-fone e ligar para o Comissário Gordon e tudo estava resolvido. Batman era um funcionário do Estado, agindo nos interstícios do poder do estado. Quando tudo parecia perdido, o home morcego havia sido capturado pelos vilões e estava para ser morto, aparecia a polícia de Gotham City – o herói estava salvo, e os bandidos estavam presos.
Quem vai prender quem? As lamentáveis Cortes que temos, a deplorável magistratura que sustentamos com nossos impostos é ela mesma cheia de Pinguins e Charadas. Não há espaço para ingenuidade, a lei e a ordem vão se esvaindo como areia por entre nossos dedos e tudo o que foi construído com muito esforço nos últimos trinta anos - a minha vida adulta – se esboroa frente aos interesses privados e à vontade do tal de “mercado”, sem que temas de moral e ética provoquem a mínima indignação.
Todo o legado do século XX e as suas guerras mundiais parece não ser mais levado a sério. A luta contra os nacionalismos perversos e beligerantes como o nazismo, o fascismo e o nacionalismo nipônico, a luta contra a exclusão social, a luta pelas soluções globais negociadas e pelas leis e valores democráticos – o quer que isso queira dizer – ficam cada vez mais relativos.
O colorido vibrante do Batman de Adam West talvez queira nos dizer alguma coisa, nos lembrar de algo que ficou para trás. Um Bat-sinal.