quarta-feira, 30 de maio de 2018

O POVÃO ENTRA EM CENA



A história é um carro alegre
Cheio de um povo contente
Que atropela indiferente
Todo aquela que a negue

(Chico Buarque , Canção pela unidade da América Latina)

Até agora eles estiveram ausentes das discussões, como se não fosse com eles. Olhavam de longe, desconfiados. Mas, apesar de desconfiados, pegavam os ônibus e iam trabalhar. Nestes últimos dias, foi diferente. Será que o “povão”, esta massa difusa que reúne operários, empregados do comercio e serviços, autônomos, técnicos e todos os serviços, finalmente entrou na arena política? Essa massa de trabalhadores não se mexeu durante o golpeachment. Também não se moveu durante a prisão de Lula. Mas estava lá, atenta.
Agora, aqui e ali, a montanha se move. As pessoas brotam como que do chão, e vão para os piquetes dos caminhoneiros. Leio na imprensa estrangeira (a BBC está dando um show de cobertura) que todos estão descontentes com a situação. Uma manicure de 33 anos num piquete na Regis Bittencourt relata ao ElPaís: "Tudo é muito caro. A gente não vive como poderia viver, porque nosso dinheiro é tão pouco e vai todo para imposto. O que você faz com um salário mínimo? Você vai no mercado e não consegue fazer uma compra decente". 
Mais adiante, no mesmo piquete, um outro manifestante, intitulando-se eleitor de Bolsonaro, diz ao repórter: "Você está contente com o país em que está vivendo? Tem que ter alguma coisa. O Temer está destruindo o Brasil". Ao ser perguntado se ele achava que a tal intervenção militar iria ajudar, ele não sabe responder.
Outros protestos ocorrem aqui e ali, de forma espontânea. Ontem, diversos pontos aqui de Campinas houve bloqueio de ruas e avenidas e dois ônibus foram queimados. Nada a ver com os piquetes. Nada a ver com os caminhoneiros. Todos estão perplexos com a situação.
O povão quer tirar este governo, por reconhece-lo corrupto e elitista. A greve dos caminhoneiros abriu esta possibilidade. Agora, não é mais um protesto de classe média. É a grande massa trabalhadora que entra em cena, coisa rara de ver na história do Brasil. Rara, mas sempre decisiva.
Assim foi nos momentos decisivos da abolição dos escravos. Assim foi nas manifestações de rua em 1983, quando encurralaram a Ditadura Militar com protestos e saques em diversos cantos do Brasil. Assim é a luta cotidiana de diversos movimentos populares, como as ocupações urbanas, os trabalhadores rurais sem-terra, os sem teto, os índios. Mas que hoje se potencializa e chega as cidades.
No entanto, essa grande massa é lenta e confusa. Sem direção. Há uma luta pela hegemonia deste movimento pelos grupos que querem uma intervenção militar. Sem Lula, preso em Curitiba, a massa está confusa e sem saber o rumo. Nestes dias, esteve sob a influência dos autoritários. Trata-se, entretanto, de uma intervenção militar confusa, sui generis, que ninguém sabe direito o que é. Algo como uma cura milagrosa, um remédio salvador. Coisa temporária, dizem alguns, para consertar o país. Mas ninguém sabe dizer ao certo o que é, como deve ser feita.
Para estas pessoas a solução mágica foi dada. Intervenção militar. Como a esquerda fez que foi e não foi, a massa está sendo cooptada por este movimento autoritário e com matizes fascistas. Limpar quem, cara pálida? Só os políticos? Aham. Já vimos este filme.
Desde a deposição da presidenta Dilma pelo Congresso, naquela sessão dos horrores há dois anos, só vemos a situação piorando. Como era previsto, há uma anarquia institucional, um bate-cabeça generalizado entre os três poderes. Um ministério publico enlouquecido. O Fla-flu disputando o discurso hegemônico até então se resumia à classe média. Agora, um novo personagem entra em campo. O povão.
Os protestos populares começaram a se diluir nas estradas na tarde desta terça. Os dirigentes sindicais dos caminhoneiros dizem que acabou, é pra se desmobilizar. Mas eles, os caminhoneiros e o povo, não se desmobilizam. Sentem que ali há uma chance. Sentem que há uma chance de ir além e mudar o país. Como? Ninguém sabe.
Parece que os protestos destes últimos dias, e mesmo os pedidos de intervenção militar não são nada mais nada menos que um grande, confuso e difuso Fora Temer. O povo não aguenta mais o presidente vampiro e seu governo zumbi, como eles mesmo disseram nas ruas e nas estradas. Não aguenta mais a economia, a política, os escândalos de corrupção abafados pelo congresso.
Mais do que intervenção militar, o povão está querendo um monumental Fora Temer.
Fora Temer.

domingo, 27 de maio de 2018

A BOLEIA E A REVOLUÇÃO





Estamos vivendo um momento revolucionário. Quem disse isso foi o grande cientista social Léo, da dupla sertaneja Victor e Léo. Conhecido pelas suas posições conservadoras, o sertanejo Léo tem hoje uma posição coincidente com o Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado, o PSTU.
A apresentadora Rachel Sheerazade, a rainha do mais tosco reacionarismo nacional, gravou um vídeo em que se mostra perplexa com os caminhoneiros “baderneiros, que querem nos transformar numa Venezuela”. Em diversos sites e comentários de esquerda, pessoas criticam o caráter reacionário dos caminhoneiros. Muitos, inclusive eu, lembraram o papel dos caminhoneiros chilenos na queda de Allende.
Por todos estes pequenos exemplos, vê-se que a greve dos caminhoneiros tem dado vazão a uma série de manifestações contraditórias. Muitos tem medo de uma greve de caminhoneiros, pelos mais diversos motivos. Alguns se assustam com os problemas de abastecimento. Na quarta e quinta, a correria aos postos de gasolina foi histérica. Outros tem medo pois muitas noticias dão conta de que grupos de caminhoneiros apoiam uma intervenção militar.
O governo, através do ministro Raul Jungman, desde quarta feira tem dito que a greve é um locaute, ou seja, uma greve de patrões, o que é proibida por lei. Por outro lado, na quinta feira chegou a fazer uma reunião em que firmou um acordo que poria fim a greve. Faltou, entretanto, combinar com os russos, ou melhor, com os caminhoneiros. Sexta o movimento continuou e recrudesceu. Por fim, Temer, o sem-força, teve que apelar para o exército e as policias estaduais.
Mas, afinal, quem são os caminhoneiros? Heróis ou bandidos? Direita ou esquerda?
Ao que tudo indica, o resultado é muito mais complexo que se imagina. Para o professor Ricardo Antunes (ver aqui), a forma de trabalho dos caminhoneiros faz com que as suas greves tenham em geral um grande componente patronal. Somente 45% dos caminhoneiros são autônomos. o restante trabalha para empresas de logística. Quando há confluência entre os interesses dos caminhoneiros e de seus patrões, o que é o caso nesta greve, as paralizações tornam-se mais fortes. 
Como notou a professora Larissa Riberti num texto que viralizou no facebook (tirei daqui), trata-se de uma luta complexa, e que não é uma luta do bem contra o mal. Não é a toa que encontramos posições politicas tão diversas nessa categoria que envolve desde empresários até "proletários do transporte". Os sindicatos estão batendo cabeça brigando entre si enquanto a base segue firme na luta, fechando as estradas. Existem caminhoneiros de todos os matizes ideológicos, como no resto da sociedade. Não há polarização ideológica nem nos tuites contra e a favor da greve. 
Claro que existem os malucos que defendem uma intervenção militar (E que devem estar bem felizes com a intervenção militar em cima deles...). Estes são os mais estridentes. Vi um video de um maluco discursando em cima de um tanque. Patético. Mas não quer dizer que sejam maioria. Assim como foi provado no episódio do assassinato de Marielle, tais grupos radicais são ativos, mas minoritários. E, até o momento, os militares "de verdade" seguem as diretrizes do governo do Vampiro, reprimindo o movimento.
Por outro lado, eu acho que esse lado "proletário" do movimento é o que mais assusta. Em geral o caminhoneiro é um cara de classe média baixa, sem muita escolarização, vivendo no limite da reprodução de sua mão de obra. Nisso ele não é diferente do operário que trabalha numa fabrica e recebe salário. Sua identificação como igual pelo povo é imediata. Talvez por isso a repulsa de Sheerazade e de muitos colegas de academia. 
Temos muito medo de revoltas populares. Assim como no passado nossa elite e classes médias eram aterrorizadas com o medo de uma revolta dos escravos. O medo de uma revolta popular nos paralisa. O caminhoneiro assim se impõe no imaginário dos humildes como um herói que afronta um governo impopular. Na classe média, é o perigo proletário que surge, trazendo desabastecimento e - horror dos horrores! - a falta de gasolina.
Na extrema direita, é um aliado a favor da intervenção militar. Para a esquerda, um agente reacionário. Para a extrema esquerda, o estopim de uma greve geral que traga a revolução. Para os neoliberais, um sinal de que precisa privatizar tudo. 
Enquanto isso, no mundo real, os piquetes continuam, a gasolina vai voltando devagar aos postos. Mas as pessoas continuam ressabiadas. Ninguém sabe o que fazer. 
Quando deram o "golpe do impeachment", que destituiu um governo legitimamente eleito, foi aberta uma caixa de pandora. Felizmente, apesar da retórica de alguns, ainda não pegamos em armas. Mas, como no mito, ainda tem muito diabo pra sair dessa caixa.
Neste momento, não sabemos mais quem manda no país. Só nas rodovias. 

sexta-feira, 25 de maio de 2018

UM PAIS NA BANGUELA



Sem caminhão o Brasil para, não é isso? É uma verdade nestes dias que correm. A greve dos caminhões chega ao seu quinto dia, com radicalização de todas as partes. O governo Temer, esse zumbi comandado por um vampiro, não sabe como sair da armadilha que ele mesmo criou. Os grevistas, numerosos e radicalizados, não tem comando efetivo e a anarquia começa a se instalar em vários lugares.
Ao que tudo indica, o movimento começou espontâneo. Os caminhoneiros autônomos, que em geral trabalham sempre na estica, com uma margem de sobrevivência muito estreita, não aguentou a política de preços promovida por Pedro parente, o homem do golpe dirigindo a Petrobras.
A frota brasileira de caminhões é uma das mais velhas do mundo. Os caminhoneiros não têm como comprar caminhões novos. Vivem trabalhando no limite da resistência física, a base de rebites e outros quetais. Os acidentes nas rodovias envolvendo caminhões tem uma frequência assustadora.
Por isso, a política “neoliberal” de Pedro Parente, de fazer reajustes automáticos do preço do combustível estava inviabilizando a vida dos caminhoneiros autônomos. Impossibilitados de manter suas parcas rendas, eles se rebelaram de maneira espontânea na ultima segunda feira.
O movimento acabou crescendo com a adesão de empresários, donos de grandes frotas, também pressionados pela política de preços de Pedro Parente. A greve, que era de autônomos, virou uma greve também de patrões. Não por acaso, as acusações de locaute são frequentes, tanto no governo quanto na imprensa.
A reunião em Brasília ontem, com os ministros do governo, foi uma reunião de empresários e algumas centrais sindicais. Não estava visível, a princípio, mas as pessoas que fizeram o acordo com Eliseu Padilha não tinham representatividade no movimento. O movimento não aceitou o acordo, e a radicalização aumenta.
Agora, surgem outros fantasmas. Temer, o presidente vampirode um governo zumbi, ameaça com a força. Escutam-se, entre alguns caminhoneiros, vozes pedindo intervenção militar. Os incendiários começam a divulgar mensagens para espalhar o térreo e o medo entre a população. Enquanto isso, o desabastecimento começa a ser uma ameaça real para milhões de pessoas.
O acordo que seria firmado entre o governo e os caminhoneiros começa a ser visto de uma maneira diferente. Muitos apoiam o movimento. Outros, criticam o fato de uma categoria usar de seu poder de pressão para obter um acordo que beira a chantagem. Outros movimentos surgem, como o dos motoboys e o de motoristas de van, pedindo uma diminuição também no preço da gasolina.
Eu particularmente, tenho muito receio de movimentações de caminhoneiros. Uma greve destas, em 1972 no Chile, acabou sendo o estopim do golpe que depôs Salvador Allende. Depois, se soube que o movimento dos caminhoneiros havia sido patrocinado pela CIA. Em 2015, um locaute semelhante pedia a deposição do governo de Dilma Rousseff.
Temer precisa de Pedro Parente. Por trás dos preços cada vez mais altos dos combustíveis estão setores ligados à distribuição do petróleo. Também adoram essa política o poderoso setor sucroalcooleiro, que amargou muitas perdas no passado com a política de manter baixo o preço da gasolina.
O impasse está criado. Vamos sofrer um final de semana de radicalização e desabastecimento. Outras greves semelhantes podem se formar no rastro da paralização dos caminhoneiros. O governo não tem credibilidade nem representa nada além dele mesmo, pois foi produto de uma deposição de um governo legalmente eleito. Não consegue nem ser neoliberal. Com o congresso do seu lado, não conseguiu aprovar todas as reformas que o capital queria. (O trabalho que trabalhe mais, e se cale.)
Usar a força nunca é bom. Paradoxalmente, pode ser um sinal de fraqueza. Deixar a população refém de uma categoria também não é bom, pois gera caos e anarquia. Da justiça brasileira nem é bom falar. Ela é responsável por boa parte do caos em que nos encontramos. a saída é o improviso, a falta de organização, a anarquia.
Vem a minha cabeça aquela frase que sempre achei injusta. Aquela que dizia que nós brasileiros não precisamos de furacões e terremotos. Temos nós mesmos, a brigar nas redes sociais num fla-flu sem fim. Temos um congresso que só se reúne para definir seus próprios interesses. Uma justiça capenga e parcial. E um presidente que não enxerga seu rosto no espelho.
Que São Mad Max olhe por nós.

sábado, 5 de maio de 2018

O CAMINHO DE DAMASCO DA DEMOCRACIA


Estamos desmoronando? (tirei daqui)
Este está sendo um mês de maio de céu azul e um pouco de calor. O ar está seco. Não como fica em agosto ou setembro, mas está seco. As acerolas do fundo do quintal começam a rarear. Somente conseguimos algumas com muito esforço, nos galhos mais altos. Daqui a pouco, não haverá mais acerolas.
Estive doente um tempo. Segundo a médica que me atendeu, é uma sinusite. Foi então que entendi porque estava tão cansado, o ar tão difícil, a respiração difícil mesmo nos dias mais bonitos. Não é bonito estar doente.
Estive em viagem de campo quando vi as notícias do prédio que desabou. Mais uma tragédia causada por um estado desorganizado e pela criminalização da pobreza. Vi uma entrevista da urbanista Raquel Rolnik sobre o caso, criticando a política habitacional brasileira, causadora desta e de tantas tragédias.
Mas ninguém está nem aí para as tragédias. Parece que a engrenagem dos que querem ver sangue a todo custo começa a se movimentar. Os movimentos são previsíveis: 1) duas pessoas, ativistas que estavam no acampamento pró-Lulaem Curitiba são baleadas; 2) no mesmo acampamento, um delegado da policia federalinvade o acampamento e quebra equipamentos. A máquina de assustar e de matar, tão cara ao imaginário dos nossos homens de bem, está à solta. Com direito a palmas e likes.
Enquanto isso, nova tragédia se desenrola no centro velho de São Paulo. O movimento já é conhecido do caso Marielle: as redes começam a injuria “ad hominem” [injúria à pessoa, e não às suas ideias ou ações]: os ocupantes são bandidos, marginais, arruaceiros.
 Um dos mortos, Ricardo Oliveira Galvão Pinheiro, rapidamente aparece nas redes como membro do PCC, matador de policiais, tinha extensa ficha criminal e voltou ao prédio para recolher malas de dinheiro. Nada disso era verdade.
Será que as tragédias não podem ser vividas sem que tenham que ser ajustadas ao roteiro destes haters?
Entre os desabrigados existem muitas pessoas de bem, pessoas dignas. Mas, é claro, não se pode ver isso. Se estão brigando por seus direitos com as armas do movimento popular são logo “bandidos”. Não ganhar o suficiente para um aluguel, por mais barato que seja, é uma prova criminal. Uma ficha corrida.
Estamos bem. Já cruzamos diversas linhas. Em novembro de 2014 os atuais homens de bem, atendendo ao apelo de Aécio Neves, a quem hoje dizem que desprezam, começaram a obstruir e liquidar um governo legitimamente eleito. Hoje, não se sabe quem manda mais no país, se o Supremo, o Congresso, o pífio presidente traíra ou um juiz de primeira instância.
As linhas estão sendo cruzadas: não se respeitam eleições, não se respeitam leis, não se respeitam instituições. Não se respeitam adversários políticos. Um shopping de Londrina, cidade em que tenho família e que tanto gosto, abriga um stand de tiro cujos alvos são os ex-presidentes Lula e Dilma. Crianças aprendem a odiar. Sabemos o fim disso, não é, Adolfo?
Estamos em maio. O clima anuncia chuvas e trovoadas, apesar do tempo seco que se anuncia. O ódio se alastra. Pessoas de bem são mais uma vez usadas como bucha de canhão de interesses excusos. Alegremente, postam absurdos, xingam, desrespeitam. Por enquanto, e só por enquanto, alguns arriscam um tirinho aqui e ali.
É a democracia a brasileira encontrando seu caminho de Damasco?