quarta-feira, 30 de novembro de 2016

A HISTORIA O ABSOLVERÁ?


Cartum de Renato Machado

Quantos e quantos bytes se gastaram (e se gastarão ainda) nestes dias em que em Cuba se preparam as exéquias de Fidel Castro?
De um lado, para muitos, ele é o grande líder da mítica Revolução Cubana, que embalou os sonhos de toda uma geração de latino-americanos. Inclusive os meus. Fidel foi o herói da igualdade e da solidariedade internacional, o camarada que enfrentou (e nunca se dobrou) ao Império. Que desafiou e sobreviveu a onze presidentes americanos. O libertador de Angola e o homem que derrotou o Apartheid e possibilitou Mandela e a África do Sul moderna.
De outro lado, para muitos, aparece a figura do ditador, do déspota, do autocrata. Neste relato, alguns o filiam a Stálin e Pol Pot, assim como a Hitler e Mussolini. Este é o relato da Cuba do paredón, da perseguição, prisão e tortura de inimigos políticos, o perseguidor de artistas, gays e deficientes.
Quem é Fidel? Perguntam-se todos. O que ele significa? Por que desperta tanto amor e tanto ódio?
Não tenho a resposta, nem sei se alguém a tem. Eduardo Galeano tem a dele (aqui). Para a Direita Raivosa brasileira, ver aqui. A melhor definição de tudo é o Cartum de Renato Machado quem faz mais jus à figura do comandante. Nem Céu nem inferno, mas a História, este é o lugar (veja o original aqui). A História o absolverá? Somente com o passar do tempo e com olhos menos apaixonados poderemos chegar a uma apreciação sincera da atuação do comandante.
Entretanto, esta discussão sobre Fidel não é somente uma discussão sobre Fidel. É uma discussão sobre nós, aqui e agora. Sobre o Brasil e seu momento atual. Vejo meus companheiros de esquerda, eu incluso, a defender apaixonadamente Fidel, relativizando o lado amargo da Revolução Cubana. De fato, “gentlemans” não ganham revoluções. É preciso ter estomago para tomar algumas medidas. Não sei se eu as teria ou não, não posso julgar moralmente uma decisão deste tipo cinquenta nos depois, confortavelmente sentado em minha mesa.
Na maior parte das questões, um atenuante óbvio se anuncia: tratava-se da Guerra Fria. Se houve barbaridades daquele lado (o bloco Socialista), do outro lado (o “nosso” bloco capitalista) quantas barbaridades também não foram cometidas? Se ficarmos só na América Latina temos os exemplos da política do porrete, quando os americanos tiravam do poder quem, do campo da esquerda, ameaçasse suas políticas. Podia ser através de golpes de prepostos ou intervenção militar direta. Exemplos abundam. Pra citar dois: a deposição de Jacobo Arbenz Guzman, na Guatemala em 1954, o golpe e a deposição do esquerdista Juan Bosch na República Dominicana, que culminou com a invasão estadunidense de 1965 (com participação da Ditadura Brasileira inclusive). Nesta lista, nem entrei na América do Sul....
O Caribe no pós-guerra era um arquipélago de ditaduras sanguinárias, protegidas por Washington. Como não esquecer da Nicarágua de Somoza (1934 – 1979), da República Dominicana de Trujillo (1931-1961), do Haiti de Papa Doc (1957-1971)?
Assim quando, do nada (para a imprensa americana) um grupo de jovens barbudos desafia e vence um destes ditadores, o não menos sanguinário Fulgêncio Batista (1933-1959), estava configurado o mito.  Sim, era possível.
Cuba sofre de um processo de atração e repulsão por seu vizinho do Norte desde sua independência, em 1898. Desde a sangrenta guerra da independência, a partir da insurreição liderada pelo também mítico José Marti (El hombre sincero de donde crece la palma!), os Estados Unidos frequentemente tomaram um papel que não lhes cabia na condução da ilha. A ocupação militar durou de 1891 a 1903. É deste ano a Emenda Platt, que se estenderia até o governo de Fulgêncio Batista, em 1933. Esta emenda dava o direito de os Estados Unidos intervir em Cuba sob pretextos diversos, limitando na prática a independência do país. Desta forma, a Revolução Cubana pode ser entendida neste contexto secular como uma reação à dominação americana e uma segunda etapa do processo de independência do país.
O embargo americano também explica diversas atitudes tomadas por Cuba desde os anos 60. A resistência torna-se seu mote, e a resistência a qualquer preço. Depois do colapso da URSS em 1991 e mesmo antes, a situação econômica piora. Mas a pequena ilha resiste. O embargo gera uma porção de problemas e uma justificativa bastante plausível ao governo cubano para tomar medidas duras. Um duro embargo que já dura mais de 50 anos.
Por outro, vejo meus amigos de direita com um relato que é verdade: sim, o regime cubano matou pessoas. Os fins justificam os meios? Não posso responder que sim. Mas entender o que aconteceu dentro do espectro de seu tempo ajuda a entender algumas decisões.
O discurso da Direita está sendo usado, no entanto, para culpar a atual esquerda brasileira. Acho isso injusto e prejudicial ao bom debate. A esquerda já fez uma boa autocrítica desta e de outras práticas do passado. Não se pode achar que Stálin e Pol Pot sejam nossos camaradas. Meus nunca foram.
Hoje, a esquerda brasileira – e é só por ela que posso falar -  é mais democrática e legalista que a direita. Falo isso com muito orgulho. Durante o golpe, embora esperneássemos, o poder foi entregue sem nenhuma resistência, dentro da lei, embora não houvesse concordância com sua interpretação.
Por outro lado, a direita sempre abusou da lei (A lei? Ora, a lei!).  A direita burra vive propondo - hoje! Agora! Neste instante! -  um retorno ao passado, um passado violento que nos remete ao mundo antes da Revolução Francesa, antes da cidadania e dos direitos do homem. Um mundo de lei e de ordem. “Direitos Humanos para humanos direitos”. Mas lei e ordem para quem, cara pálida? Continuamos a mesma política do Império e da Colônia, admitindo tortura e morte sem julgamento para os mais pobres, que não por acaso são pretos e índios.
A direita mais “light” vive fazendo armadilhas e mudando as leis. Para quem está reclamando das anistias ao caixa dois e as outras patifarias que o congresso está fazendo: lembrem-se da corrupção que foram os cinco anos para Sarney e a reeleição de Fernando Henrique. O prof. Luiz Felipe Alencastro há muitos anos atrás denunciou esse golpismo “light” através das mudanças constitucionais (aqui).
Falar de Fidel, hoje, é falar do Brasil. É isso que nossos amigos de direita querem nos dizer é: “Isso não serve para nós, não está vendo? ”. “É isto o que você quer para o Brasil? ”, como diziam no tempo da Ditadura. Não, isso não nos serve. Por exemplo, não compactuo com tortura e assassinato sem julgamento, como fez o Exército Brasileiro nos anos 70 (ver o livro de Elio Gaspari, “A Ditadura Escancarada”). Atrocidades que o Exército Brasileiro nunca admitiu, o que é mais vergonhoso ainda. Não compactuo com o genocídio de pretos e índios que as policias militares e diversas milícias vem fazendo no campo e nas cidades.
Não compactuo com políticas de discriminação social, religiosa e qualquer outra. Se Fidel tratou de forma abusiva os gays (los enfermitos), ele está numa companhia que não é boa, mas numerosa. A prática de castração química, prisão e morte foi muito comum no passado (veja os exemplos na Inglaterra e nos Estados Unidos, e mesmo aqui no Brasil) e ainda o é no presente em vários países. Isso tem que ser posto em sua correta dimensão: estava errado e tem que ser denunciado. Agora, eu acho estranho que muitos que reclamam da “Ditadura Gayzista” estejam agora se compadecendo de nossos companheiros homossexuais. Cubanos.
Não gostam de Fidel? Tudo bem. Não gostam de sua prática política? Faz parte do jogo. Eu acho Fidel uma grande liderança e uma pessoa importante na luta dos povos por mais igualdade. Ele é incoerente e cometeu erros, sim. Ninguém é coerente o tempo todo. Ele não é candidato a Santo. Mas não é possível ignorar que sua luta foi importante na melhoria de vida e na redução das desigualdades em Cuba e na América Latina. Não é possível ignorar seu papel no fim do Apartheid. Não é possível ignorar as conquistas da Medicina cubana (veja um depoimento do insuspeito jornalista Jorge Pontual, da Globonews, aqui).
Cuba tem os desafios dela (ver aqui), nós temos os nossos. Nós nunca enfrentamos, com exceção dos governos petistas, o desafio de superar nossas desigualdades. Vivemos numa sociedade estamental e extremamente desigual. Nossas classes dominantes nunca quiseram expandir o ensino e a cidadania. Pelo contrário, nos enfurnamos em condomínios fechados e depois reclamamos que a rua está tomada por bandidos. Não estamos nem aí para uma sociedade em que a polícia nos trate todos como iguais. Somos coniventes com a tortura nas delegacias e com a morte de jovens, pretos, índios. Somos lenientes com a cultura do estupro, expondo nossas mulheres a situações inconcebíveis. Temos aversão e permitimos que as pessoas LGBT sofram com a violência e o assassinato.
E depois, refestelados no sofá da casa assistindo à televisão ou, então, na tela do computador ou do telefone, ficamos nos horrorizando com estas mesmas coisas. Mas no país dos outros.
Enquanto isso, Fidel entra na História pela porta da frente.

domingo, 20 de novembro de 2016

HOMO DEBEM


(a Paleontologia Imaginária é um ramo da Paleontologia que trata de animais incertos; é um ramo do conhecimento que faz fronteiras com a paleontologia, a geografia, a física molecular, a psicologia e com Morretes (PR). Como membro da Sociedade Brasileira de Paleontologia Imaginária (SBPI) e colaborador da South American Review of Imaginary Paleontology, periódico classe A1 da CAPES, venho através deste blog fazer a divulgação científica da Palentologia Imaginária para o publico interessado em ciências)


Os homens de bem não constroem Impérios;
apenas lhes fornecem a argamassa.
Millôr Fernandes
Dentre todos os locais do Leste Africano onde foram encontrados resquícios de hominídeos fósseis, nenhum tem causado tanta polêmica quanto a Garganta de Olduvai, onde foram pela primeira vez encontrados os restos fósseis do homo debem. Segundo o arqueólogo Osborne Leakey, primo de Richard Leakey, o homo debem foi uma espécie representativa do Pleistoceno inferior de Olduvai (O. Leakey, 1959). Os principais jazigos fossilíferos, localizado nos estratos superiores, indicam sua ocorrência imediatamente após as Grandes Guerras Pleistocênicas (Marshall, 1946).
Algumas características iniciais mostravam tratar-se de uma espécie dominante, de comportamento bastante singular. Consumia com avidez os produtos líticos de seu tempo, e desfrutou de um período de grande irradiação, tendo alcançado a maioria dos locais habitados pelos hominídeos de seu tempo (McLuham, 1960).  
Segundo os principais trabalhos sobre o homo debem, a espécie era reconhecida por ser muito produtiva, produzindo artefatos líticos de consumo para a maioria dos hominídeos de período (Ford, 1927; Toyota & Ford, 1957; Toyota et al., 1988). Tinha um comportamento monogâmico restrito, e se acasalava com fêmeas recatadas e das cavernas (Fora Temer, 2016). Segundo alguns pesquisadores do período, o homo debem era uma espécie muito respeitada e temida em todo o leste africano (Magnoli, 2011).
Estudos mais recentes, porém, mostram que o comportamento do homo debem não é tão homogêneo quanto aparentemente se pensou (Foulcault, 1974). Os homo debem eram na verdade uma espécie bastante subordinada entre os demais grupos de hominídeos. A espécie verdadeiramente dominante eram os homo debens, que controlavam os grandes caminhos murados (wall streeets, em inglês). Os homo debens dominavam a produção dos homo debem e exploravam seu trabalho de produção de manufaturas líticas (Pikety, 2012).
Frequentemente, durante as crises provocadas pelo homo debens, os homo debem perdiam suas ferramentas e ficavam sem ter o que fazer, vagando pelas savanas e consumindo bebidas alcoólicas (Bukowsky, 1960). As fêmeas da espécie rebelavam-se continuamente contra sua dominação, e os lares chefiados somente por fêmeas da espécie chegou a representar metade dos locais de moradia ao fim do pleistoceno (Beauvoir, 1956).
Depois de duas grandes crises, datadas pelo Carbono 14 em 100.929 e 100.208 BP (antes do presente), os homo debem foram praticamente extintos (Soros & Buffet, 2008). No entanto, algumas espécies de hominídeos inadaptados para as mudanças daquele início de milênio, acabavam por associar os homo debem a posturas retrógradas e conservadoras (O. Carvalho, 2013). Espécies parasitas como o Coxinhus sp e o Australopithecus bolsonarius participavam de estranhas festividades com os corpos pintados de amarelo e orando para uma divindade aquática (O Grande Pato), tentando lembrar dos homo debem como um exemplo positivo de hominídeo (R. Azevedo et al., comunicação verbal, 2016).
Alguns pesquisadores, no entanto, levantam a hipóteses de que os homo debem jamais tenham de fato existido. Segundo estes pesquisadores, a lenda dos homo debem, pacíficos e corretos, foi inventada para que os demais hominídeos da região se submetessem mais pacificamente aos homo debens (Chomsky, 1980; Chomsky, 2010; Chomsky, 2014). A polêmica subsistiu durante vários anos, sem resultados satisfatórios (Villa, 2012; Villa, 2013; Villa, 2014; Villa, 2015).
O que se sabe é que após a provável extinção dos homo debem persistiram vários anos de disputas no leste africano, entre os lados direito e esquerdo do vale de Olduvai, sobre quem se apropriaria do material lítico produzido. Não se sabe exatamente o que resultou, mas a ampla proliferação de hienas e urubus na região pode ser indicativo de uma extinção generalizada de vários espécimes de hominídeos (O. Leakey, 1964).


domingo, 6 de novembro de 2016

A CAPELA E SEU ANIVERSÁRIO: SAUDADES

Os meninos magrinhos dos anos 60/70 marchando no aniversário da Deitada-a-beira-do-mar
Mais um dia ensolarado por aqui. Venta um pouco de manhã, faz um friozinho, mas daqui a pouco o sol levanta e vai esquentar muito. Grandes nuvens se formam nas serras ao norte, rumo de Minas. Os passarinhos fazem uma feroz algazarra pelas arvores ao redor.
Vejo no meu telefone que o tempo em Antonina é nublado, com 50% de probabilidade de chuvas. A temperatura oscila pouco, entre confortáveis 19 e 23 graus. Será que vai ter desfile?
Quando era pequeno, esse era o terror dos dias 6 de novembro: será que vai chover? Se chovesse muito, o desfile do aniversário da cidade seria cancelado: como assim, não desfilar? A gente ensaiava um monte, noites e noites lá na caserna dos escoteiros, para que todos marchassem bonitinho, todos juntos, pé direito, pé esquerdo, num mesmo ritmo marcial. Se chovesse, como seria?
Nos meus anos de guri, todos se reuniam no coreto da praça: as escolas, as associações beneficentes, os escoteiros. Era um mundo, penso hoje, ainda tributário da era Vargas e daquele mundo protofascista das corporações. Mas, para nós, naquele tempo, isso não importava. Era uma festa. Todos estavam de roupas de festa. Nós, escoteiros, impecavelmente fardados.
No coreto, os discursos. Nem me lembro. A gente não ouvia direito, ou não entendia direito. Não devia ser coisa séria mesmo. Estávamos ali tentando ser marciais, brincando de soldadinhos. Lá em cima, o Prefeito, o Presidente da Câmara ou quem quer que fosse o orador, nada disso nos importava. Ficávamos vendo era quem chagava atrasado, quem havia esquecido alguma peça da farda, quem estava com o lenço arrumado, o bibico certo na cabeça.
Depois, vinha o desfile.
Os escoteiros abriam o desfile, marciais e garbosos o quanto podíamos ser marciais e garbosos aqueles meninos magros mal cabendo nas fardas. Na verdade, desfilávamos para nós mesmos e para nossas famílias. Sempre quando passávamos tinha um grupo que aplaudia um de nós, gritava o nome, batia palmas. Eram as famílias que estavam ali, enxergando-se naquele menino de farda um futuro e um passado.
Ficávamos sempre muito nervosos durante o desfile, de olho pra ver se estava tudo certo, se todos estavam de passo certo. Estávamos todos nervosíssimos até chegarmos ao Jequiti, onde o desfile terminava. Ali, quando nos dispersávamos, tínhamos uma outra tarefa: cuidar da “segurança” do desfile.
Armados de grossos bastões de madeira, ficávamos 1á frente da multidão para impedir que se atravessasse a pista do desfile, coisa que quase nunca acontecia. E ali ficávamos, marciais, “cuidando” do desfile das escolas e das associações. Era um prazer ter toda aquela responsabilidade. Lembro do orgulho que nós sentíamos por estar ali, fazendo parte das comemorações da cidade.
Acho que esta é a minha emoção mais marcante do dia 6 de novembro.
Faz muito tempo que não vou a um desfile do aniversário da Deitada-a-beira-do-mar (o deste ano é do 219º aniversário da elevação à vila, não é isso?). Aquelas lembranças são de um outro tempo, de uma outra cultura, de uma outra pessoa. Não sei como são os desfiles hoje, nem sei se teria paciência para assisti-los.
Sinto mesmo é uma grande e carinhosa lembrança de minha infância, de meus companheiros. Lembrança de um tempo que eu me sentia ligado profundamente a minha cidade e à sua gente. Por mais que me esforce, aquelas sensações aparecem para mim borradas como numa fotografia antiga.
Saudades, Capela! Saudades, Grupo Escoteiro Valle Porto de Antonina!