sexta-feira, 9 de dezembro de 2022
O PENALTI E A VIDA
sábado, 3 de dezembro de 2022
ABOUBACKAR E O HEROISMO SEM CAMISA
Vincent Aboubackar comemorando seu gol na Vitoria sobre a seleção brasileira MICHAEL REGAN/GETTY IMAGES encurtador.com.br/lxyI8 |
Aos 45 do segundo tempo, num contra-ataque após a intensa
pressão da seleção brasileira, Aboubackar recebeu o cruzamento da direita e
escorou de cabeça tirando Ederson da jogada. Belíssimo gol. Com o estádio inflamado
com o gol e a torcida brasileira perplexa, Aboubackar tirou a camisa e se
dirigiu ao corner. Lá, foi abraçado pelos companheiros e voltou exibindo,
orgulhoso, a sua camisa ostentando o número dez.
Em meio a tanta alegria e comemoração, já não importava se
havia tirado ou não a camisa, a euforia era tanta não importava essa
penalidade tão estupida. O árbitro da partida, o americano de origem marroquina
Ismail Elfath, chegou sorrindo, cumprimentou
Aboubackar e aplicou os cartões: primeiro o amarelo e, em seguir, o vermelho. O jogador saiu
de campo sorrindo, aplaudido pela torcida e numa alegria incontida. Eu nunca havia
visto uma expulsão tão injusta e tão bonita.
Aboubackar já havia
marcado um belo gol nesta copa, o segundo gol de Camarões contra a Sérvia, onde
ele fez um gol encobrindo sutilmente o goleiro. O jogador camaronês, de 30 anos, está em sua segunda copa,
tendo vindo ao Brasil em 2014. Pela seleção de Camarões, marcou 35 gols em 91
jogos.
A valentia e a alegria de Aboubackar foram uma ducha de água
fria no entusiasmo dos torcedores brasileiros. Embora não valesse rigorosamente
nada, pois a seleção brasileira já estava classificada para a próxima fase, a
derrota tomou ares de alerta e de preocupação.
Até então, desde a estreia vitoriosa contra a Sérvia quanto
a vitória suada contra a Suíça, o time brasileiro era julgado superior e franco
favorito. Agora, dúvidas pairam sobre o time e sobre a estratégia adotada pelo técnico
Tite.
Entendo pouco de futebol. Li muito desde sempre sobre o
esporte bretão e sobre a vitoriosa história da seleção brasileira, o bastante
para saber coisas importantes de sua história, desde os tempos de Friedenreich até
a Campanha do Catar. Posso citar jogos que não vi, como o segundo tempo da
final de 1950 os jogos de Garrincha e equipe nos gramados do Chile.
Como observador direto, acompanhei o fantástico time de 70, fiquei
perplexo com o massacre do Sarriá, adorei o time da Famiglia Scolari de 2002 e
me decepcionei com o 7a1. (me explicando: sei suportar derrotas. Afinal, torço
para o Athletico Paranaense, time que me dá algumas alegrias e muitos
vice-campeonatos).
O que me decepciona com o 7a1 foi que não purgamos a derrota,
não crescemos, não quisemos mudar a estrutura de nosso futebol. É uma dor ver
um país futebolisticamente tão poderoso e tão colonizado, mero fornecedor de
pé-de-obra para as metrópoles do futebol mundial, com diz mestre Juca Kfouri. Onde
somos uma potência, escolhemos continuar a ser colonizados. Diz muito sobre
quem somos.
Por isso, não fiquei triste com o gol de Abubackar e a
derrota para Camarões. Perder faz parte do jogo. E é só isso, um jogo. Que é,
em si muito legal. O futebol é um esporte que todos podem jogar, e em qualquer
lugar. É um esporte pré-industrial, e não um esporte industrial como o vôlei e
o basquete, onde as equipes jogam compactas como máquinas. O futebol é mais anárquico,
mais imprevisível, em que você pode ganhar o jogo numa só jogada. Onde o fraco
pode vencer o poderoso algumas vezes.
Portanto, saúdo a
alegria e o heroísmo de Vincent Aboubackar, que venceu e tirou a camisa, mesmo
sabendo que seria expulso. Minutos antes, ele havia tomado um cartão amarelo lá
atrás, como um bom operário da bola, protegendo sua defesa dos impetuosos e
pouco objetivos reservas brasileiros. Instantes depois, ele era o herói que
sacudia o estádio, um herói que castiga a arrogância canarinho. Um herói improvável
num mundo tão improvável. Esta é a magia do futebol.
Uma magia a que mesmo os muitos de nós que andam tão céticos com
essa magia, nos curvamos e ficamos alegres. Se existem os deuses do futebol, eles
adoram umas boas traquinagens. E de rir muito. Adoro.
segunda-feira, 28 de novembro de 2022
CASEMIRO E A PÁTRIA SEM CHUTEIRAS
Casemiro e Vini comemorando o gol Nelson Almeida/AFP encurtador.com.br/fvxBV |
Uma tarde de chuva fria e fina aqui em Barão Geraldo, após um
jogo de Copa de Mundo também muito chorado. No Qatar, a seleção brasileira venceu
a seleção da Suíça por um magro 1 a 0 e está classificado para as oitavas de
final, assim como a forte seleção francesa.
Depois do primeiro jogo, na última quinta-feira, está mais
comum ver pessoas com a camisa verde-amarela nas ruas e nas imagens. Apesar da
overdose de gente com camisas amarelas no noticiário esportivo e também no
noticiário político, percebi uma grande diferença: desta vez, em sua maioria,
quem está vestindo literalmente a camisa são, em sua maioria, corpos negros.
Eu vi uma coreografia ensaiada por um grupo da Maré, no Rio de Janeiro, liderados pelo influenciador Raphael Vicente, e que ficou linda
maravilhosa. Inspirados numa música de Shakira, ali eu vi a ginga e a alegria
que temos nos campos e nas comunidades. Ali eu vi que só quem pode ressignificar
esta camiseta é o povo. E o povo já fez isso. Os outros, da nossa arrogante
classe média branca, estão por aí, tristes, rezando e tomando chuva.
Estes brasileiros, aliás, estão lá nos estádios da Copa, semi-europeus,
torcendo para os negros e pardos que, lá no gramado, fazem do futebol
brasileiro uma arte. São estes brasileiros classe média que, do alto de seus privilégios,
ainda conseguem atacar Gilberto Gil, nosso espírito iluminado. Que as areias do
deserto se fechem sobre eles, e que mestre Gil siga nos trazendo a Paz.
Hoje decidi assistir ao jogo sozinho no meu sofá. Tive alguns
momentos um receio e um dejá-vu: a última vez que havia feito isso foi no tenebroso
7 a 1. Mas já sou bem velhinho e experiente para saber que o jogo é jogado lá
no Qatar e nada que eu faça, como ir ao banheiro, fazer uma pipoca, se enrolar
na bandeira, beijar uma figa, nada disso resolve. Ou resolve?
O fato é que foi um jogo muito tenso. Mais experientes que
os sérvios, os suíços, se não reeditaram o famoso ferrolho helvético dos anos 1950, também
não deram muita folga pra gente. Outro fato é que os suíços jamais haviam
perdido para o Brasil em Copas do Mundo.
Hoje um pouco menos vibrante, a esquadra brasileira também não
jogou mal. Teve destaques fortes em Vini Jr e em Casemiro, este último esperto e
inteligente no chute ao gol. Mas ninguém foi mal. Sequer Neymar, que ficou no hotel
e foi substituído nas arquibancadas por um sósia muito mais simpático.
Outra coisa que eu nunca tinha enfrentado foi o tal do VAR. Vai
demorar pra eu me acostumar ao VAR, ora se vai. Apesar da tecnologia diminuir
em muito as reclamações e as intermináveis discussão nas mesas redondas futebolísticas,
como fazemos sem as reclamações e as intermináveis discussão nas mesas redondas
futebolísticas? O gol de Vini Jr, segundo os analistas corretamente anulado,
foi uma pintura. É quase como se Van Gogh, da excelente seleção holandesa, descartasse
e jogasse fora o Retrato do Dr. Gachet porque a moldura estava com problema...
Ao fim, o placar magro valeu os tais dos três pontos. Os suíços,
pela primeira vez, souberam o que é perder para a seleção Brasileira. E nós
seguimos em frente com nossas alegrias e contradições. Cada jogo de Copa do
Mundo tem seu herói, ou seu vilão. Pobre do país que precisa de heróis, como
dizia um cara sábio do passado. Mas nós somos um pobre país.
O herói da vez foi Casemiro, meia forte e de futebol
elegante, e que habita lá para as bandas do Bernabeu. As histórias e as falas nas
redes sociais e na imprensa com certezas serão outras. Sai o Pombo e seu jeitão
de moleque grande, solidário e zoador, e entra em seu lugar a figura do capitão
brabão, que decide nos momentos mais difíceis. De heróis e chutes se faz a crônica
esportiva, ora pois.
A copa segue, lá nas tristes areias do Golfo Pérsico. Aqui,
o país se reinventa. Que venham camisas amarelas, que venham azuis. A pátria,
não a quero de chuteiras, assim como não a quero de armas na mão. Quero a dança
do pessoal da Maré, quero a alegria da prova dos nove, como já nos disse
Gilberto Gil.
Pindorama o país do futuro.
quinta-feira, 24 de novembro de 2022
RICHARLISON E A ALEGRIA DE JOGAR
https://5tka.short.gy/awYtw7
Hoje fiz coisas que há muito não fazia. Não, não consegui vestir a amarelinha. Ainda estão na minha cabeça o sequestro de vários símbolos nacionais pelos golpistas.
Não é disto que eu quero falar
hoje.
Fui assistir o jogo da seleção
brasileira diante da Sérvia, estreia dos pentacampeões na Copa do Mundo no Qatar,
essa Copa do Mundo tão estranha e infeliz. Mas não é disso que se trata hoje. Fui
com vários amigos e diversos alunos na Estação Barão, o bar dos estudantes daqui
de Barão Geraldo.
Foi uma grande emoção ver tanta
gente reunida e num mesmo sentido. O fato de estarem de verde amarelo me perturbou
no início. Muitos com camisa azul, muitos com camisas alternativas, muitas com
outras camisas. Aos poucos, fui perdendo minha inquietação e fui gostando de
ver aquela multidão. Muita alegria e esperança no ar.
No início, um jogo tenso, com os sérvios
todos na sua grande área, em duas linhas de defesa. Difícil passar por ali. O primeiro
tempo foi só isso. Os meninos do Brasil tentando furar aquela muralha vermelha.
Vermelha dos uniformes vermelhos dos sérvios, bem se diga.
No segundo tempo, a coisa começa
a mudar. A movimentação do time muda, e a barreira sérvia começa a ser
ultrapassada. Numa jogada mais estridente do até então apagado Neymar, Richarlyson
completa para o gol.
Uma imensa euforia toma conta dos
menines onde estou. Uma alegria arrebatadora. É gente gritando, se abraçando,
jogando cerveja para cima, uma grande euforia toma conta da multidão. As coisas
começam a ficar mais tranquilas.
Foi pouco tempo depois. É quando Vini
Jr cruza e Richarlyson, o Pombo, voa para a consagração. Seu voleio, de uma
plasticidade incrível, faz mais cerveja voar ao redor. Golaço. Todos pulam extasiados.
Um gol maiúsculo de um menino estreante em copas do mundo. Que clareza, que
objetividade!
O local onde estávamos foi à
loucura. Gente pulando, gente gritando, gente se abraçando. Levamos uma chuva
de cerveja, confundidas com a chuva errática que começava a cair. Que lindeza o
gol de Richarlyson.
Velho que sou, ali vi Zico, vi Sócrates,
vi Falcão, craques de minha infância/juventude a nos brindar com jogadas
estupendas e muito bem trabalhadas. Vi uma alegria de jogar e uma qualidade que
há muito não via. Que beleza meninos!!
E quantos meninos! Depois que Neymar
saiu machucado, vi ainda Casemiro, Rodrygo, Raphinha, Gabriel Jesus e tantos
outros, todos acossando os grandalhões sérvios, que corriam e não entendiam o
que estava acontecendo. Um show de bola. Fiquei muito feliz de ver tantos meninos
jogando, alegres e com muita qualidade.
Não é pra ficar confiante demais.
A copa, para uma seleção do porte da brasileira, só começa a ser copa depois
das quartas de final. Não é arrogância, é verdade. A Sérvia era um bom adversário,
mas não e um time para afetar o time brasileiro numa Copa do Mundo. No tempo em
que eles eram parte da antiga Iugoslávia, eram melhores. Hoje, separados e
brigados entre si, são só uns grandalhões correndo atras de uma bola.
Tem muita coisa ainda pela frente
nesta Copa, mas fiquei feliz. Fui pra casa feliz. Feliz, inclusive, de saber
que Richarlyson é uma pessoa antenada e atenta ao mundo além do futebol. Não é Sócrates,
mas tudo bem. Sigamos adiante, com alegria.
Com tudo o que passamos – e ainda
estamos passando neste ano – foi um dia de muita alegria e união. Não cabem metáforas
de seleção e povo. Mas cabe a alegria que nos assombra a todos nessa noite de quinta-feira.
É só um time de futebol. Mas parece
mais.
quarta-feira, 15 de junho de 2022
LULALCKMIN
A Paleontologia Imaginária, ao contrário do que se imagina, não tem uma evolução linear enquanto disciplina científica. Como qualquer ramo da ciência, tem tido agudas controvérsias e grandes mudanças paradigmáticas em seu desenvolvimento (T. Kuhn, Congresso de Paleontologia Imaginária de Antofagasta, 1962). A questão dos Cisnes Verdes fósseis e sua comprovação empírica (Popper, 1939), por exemplo, foi um destes grandes momentos.
Contudo, dentre tantas controvérsias, a questão do gênero Lulalckmin
ocupa um capítulo à parte. Quando seus primeiros espécimes foram descobertos e
analisados (Lula da Silva et al., 2022, Imaginary Paleontological Review),
muitos notaram a notável semelhança com outros espécimes já muito conhecidos do
registro paleontológico, como o Lulinus, encontrados em terrenos pliocênicos do
ABC Paulista (Atas do 13º Congresso de Paleontologia Imaginária de São Bernardo,
1980), e o Geraldinus, encontrados em terrenos similares na bacia sedimentar de
Pindamonhangaba (Covas et al., Congresso de Paleontologia Imaginária de Pinda,
1996).
Segundo muito analistas, tratavam de duas espécies muito
diferentes e inclusive competidoras entre si, sendo quase impossível encontrar
um organismo com características das duas espécies. O Lulinus era um mamífero
muito adaptado a vários ambientes, associados com espécies do Gênero Sinistrus
(ver PTistus sp). O Lulinus, inicialmente descoberto em sítios paleontológicos
fosseis em Garanhuns, chegou a ser a espécie dominante no plio-pleistoceno, ocupando
inclusive trechos de cerrado no Brasil central (Lulalá et al., Congresso de Paleontologia
Imaginária de Brasília, 2002). Embora proveniente da base da cadeia alimentar,
o Lulinus chegou a conviver tranquilamente com espécies predadores enquanto
estava protegendo espécies predadas (Genro, 2005).
Já o Geraldinus era uma ave tucaniforme que chegou a dominar
extensas áreas da Pangeia (Cardoso, 1994, Imaginary Paleontological review). No
entanto, inicialmente sua distribuição geográfica era restrita ao território do
atual estado de São Paulo, que chegou a dominar desde o Cretáceo. O Geraldinus,
ao contrário dos demais tucaniformes desta época, ocupava preferencialmente
extensas áreas dominadas por cucurbitáceas, como o Sechium adule, ou chuchu.
Apesar de estarem bem adaptados ao ambiente cucurbitáceo em que viviam, os Geraldinus
quase foram extintos no fim do holoceno graças aos ataques de canídeos do gênero
Bolsodoria (Congresso Paulista de Paleontologia Imaginária, 2018).
Dada a grande dessemelhança das espécies, muito apontaram
ser o Lulalckmin uma fraude, fruto de reconstrução maliciosa de espécimes
fósseis (Gomes, 2022, Congresso de Paleontologia Imaginaria de Paris). No
entanto, alguns mostraram que o surgimento do Lulalckmin, apesar dos muitos
pontos ainda em aberto, pode ter sido muito importante para combater os vermes anaeróbios
do gênero Bolsonarus, que tornaram muito difícil a sobrevivência de importantes
ambientes paleoecológicos brasileiros. Muito apontam que mamíferos com
características de aves já foram descritos em espécimes fosseis imaginários em
vários ambientes, como o ornitorrinco australiano ou mesmo o Pegasus sp, o
cavalo alado, cujos primeiros registros foram feitos na Grécia antiga, citados
por Aristóteles em sua Física (livro IX).
A origem do Lulackmin está em aberto. Ainda não temos argumentos
que possam esclarecer sobre a origem do Lulalckmin nem a sua função
paleoecológica. Quem sabe nos próximos meses tenhamos acesso a novas
descobertas que possam dar uma nova luz e esclarecer esta importante
controvérsia.
segunda-feira, 10 de maio de 2021
A MORTE DANÇA NA RUA
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E enfim é chegado o tempo em que ela, que sempre esteve entre nós, não nos espera mais na saída de casa, nos banheiros públicos, nos caminhos para as matas. Ela já não tem mais a antiga pressa, embora esteja trabalhando como nunca. Funcionária zelosa e dedicada, ela agora dança alegremente nas ruas, entra em nossas casas, toma caipirinha nas festas de domingo.
A morte dança na rua. Nós não conseguimos enxergar os vírus
com a vista desarmada. As pessoas contaminadas não têm bubões da peste, não tem
diarreias abundantes. Portanto, concluem alguns, não existe essa tal pandemia, embora
estejamos há tanto tempo escondidos em casa, lavando obsessivamente as mãos com
álcool gel e usando máscaras. Contra todos os esforços, as vacinas, as medidas
sanitárias, ela, a morte, gargalha e zomba de nós na frente de nossas casas.
A morte dança na rua, toma ônibus lotados, participa de
cultos ruidosos e ri, fumando um cigarrinho com os peões de máscara no queixo,
na roda de conversa do fim do trabalho. Mas a morte também frequenta festas e barzinhos
da moda, a morte se preocupa com a saúde e frequenta academia cheias de gente
entediada e marombada.
Como num quadro de Brueguel, o que vemos são pequenos
demônios confraternizado em nossas ruas semivazias. Alguns desses passeiam de
carros caros e engalanados de verdeamarelo para saudá-la, a ela, a desenganada
das gentes. A morte sorri seu riso sem dentes, encabulada. Sim, parece que até
para ela tais demonstrações de apoio são demasiadas, desnecessárias, pouco
pudicas. Mas o carnaval dos pequenos demônios segue por nossas ruas, numa
alegre carreata que parece não ter fim, nem senso.
A morte entra desabusada pelos palácios. Lá, senta-se na
mesa de reuniões cercada de homens sérios e cheios de assuntos importantes, dá
ordens e anda sem ser molestada pelos corredores do poder. A morte passeia
entre os comensais dos banquetes, feliz e esvoaçante, contando aqui e ali doces
piadas macabras. E nosso PIB, ali presente, ri, porque eles riem à toa.
A morte zomba de nós, e vai ceifando vidas. Antes era o
conhecido do conhecido, agora o próximo, o distante, o amigo, o ente querido.
Famílias inteiras dão um tributo amargo à morte, que dança nas ruas e nas
praças, dança feliz e sem máscara numa cidade semivazia.
As mortes ocorrem solitariamente, dentro das casas ou nos
hospitais lotados. O paciente, entubado sem sedativos e amarrado para não se
soltar, sofre seu calvário moderno no escondido das UTIs. O desespero de
comprar oxigênio passa longe, nas telas da televisão. Diante de tanta dor,
declaramos que estamos cansados, que temos direito a um pouco de descanso e
sossego, que temos direito a escapar dali, mas pra onde, meu Deus? Pra Praia?
Pro Sertão?
O céu de maio está azul e amplo, passarinhos cantam e
procuram comida, mas nosso mundo está fechado, tomado por uma imensa bruma
verde e amarela, sulfurosa e pútrida. Não há mais pátria, não há mais senso de
unidade. A morte nos unifica, nos agrega, nos seduz. Vacina pouca, meu pirão primeiro, antes ele
do que eu. O presidente ri e conta piadas de nosso desespero em miseráveis
shows de televisão.
O tempo está congelado, não há futuro, só este amargo
presente. Nele, a morte ri e dança nas ruas, numa festa sem fim, num pesadelo
sem direito a acordar.
quinta-feira, 11 de março de 2021
O GRANDE DESASTRE DE 11 DE MARÇO DE 2011
Dedico esta postagem ao povo de Antonina e aos moradores do bairro Floresta, em Morretes, juntos na mesma tragédia
Foi hoje o dia, há dez anos atras. 11 de março de 2011. Um
dos piores desastres que o litoral do Paraná enfrentou. Um dos piores desastres
que os antoninenses enfrentaram.
Um desastre não começa exatamente durante a chuva torrencial.
Muitas vezes ele começa antes. Começa da forma como a sociedade se divide, e na
divisão desigual da riqueza, que empurra os menos favorecidos para as áreas mais
sujeitas a desastres. Continua nas casas, construídas nas regiões mais vulneráveis
e da maneira mais precária.
Durante o momento “quente” do desastre existe muito esforço
de ajudar. Existe aquela saudável animação de Bombeiros, Defesa Civil,
prefeitura, muita gente pelas ruas. Mas depois, quando o assunto esfria, quando
o jornalista deixa de pautar a notícia, quando o dia a dia se impõe, o desastre
continua por outros meios.
Em março de 2011, em Antonina e Morretes, no dia anterior
tinha chovido muito. Naquela sexta feira, 11 de março de 2011, o mundo caiu
sobre o litoral do paraná. A quantidade de chuva, que nos poucos pluviômetros que
tínhamos então na região, pontam marcas de até 260 mm por metro quadrado por
dia. Para que se tenha uma ideia, um furacão tem chuvas de até 600 mm/dia.
A quantidade de chuvas era o suficiente para gerar uma catástrofe.
E catástrofe foi o que aconteceu em vários pontos do litoral paranaense naquele
dia.
A defesa civil antoninense fez o dever de casa, e chamou a
sede em Curitiba. O pessoal desceu, juntamente com alguns geólogos da MINEROPAR,
entre eles Rogerio Felipe. Ao chegar no sopé do morro da Laranjeira, Rogerio ficou
muito assustado com o que viu. “Falei para Defesa Civil tirar todo mundo”,
me contou, emocionado, tempo depois. A percepção de Rogério foi a diferença
entre a vida e a morte das pessoas que ali moravam.
A única vítima, infelizmente, foi seu Pedrinho, que tinha
ficado de tomar banho antes de sair de sua casa. Não deu tempo. Quando os
bombeiros resgataram seu corpo, o velho porteiro do Cine Opera na minha infância,
agora um senhor de 80 anos, já estava morto. À noite, nos fundos do cemitério são
Manoel, uma torrente tiraria a vida de uma jovem mãe que havia voltado à casa
para pegar a mamadeira de seu filho. Estas foram as duas vítimas capelistas da
grande tragédia.
Em Morretes, o rio Nhundiaquara havia subido, inundando a
cidade mais uma vez. Havia escorregamento por todos os lados da cidade, mas no
distrito de Floresta, na Serra da Prata, na divisa com Paranaguá, entretanto, a
situação foi bem mais dramática. Uma série de torrentes de detritos varreu os
morros da Serra da Prata, arrasando a comunidade de Floresta. Segundo seu
Arlindo Capeta, morador e líder comunitário do bairro, com quem conversei
depois, “teve um grande estrondo e a terra começou a tremer”. Veio água,
veio pedra, veio arvores enormes descendo com a correnteza, contou ele.
Seu Eurides Lucheta, que tinha uma casinha perto do morro do
Gigante, mais adiante na serra, ficou isolado por três dias, só se alimentando
de bananas e tomando agua suja. No domingo, foi resgatado por um helicóptero da Polícia Militar. É
dele a descrição mais precisa do tipo de torrente que descia a serra. Ele
contou que uma cachoeirinha que tinha nos fundos de sua casa subitamente secou.
Provavelmente formou-se um grande barramento natural de rochas e tronco serra
acima. Quando o barramento se desfez, houve um grande estrondo, e ele correu
para se abrigar nas pedras. A torrente veio feroz, e levou sua casinha e seu
cachorro, que havia ficado para trás. “Parecia uma onda grande do mar”,
nos contou ele.
Quando cheguei à Antonina no dia 14 de março, numa missão do
CENACID, o Centro de Apoio Científico em Desastres da UFPR, chefiado por nosso
amigo e companheiro Renato Lima, a situação estava confusa na Deitada-a-beira-do-mar.
Ainda muita lama pela cidade, o grande escorregamento da avenida Nenê Chaminé barrava
a rua. Na Laranjeira, era só desolação: casas que desapareceram, casas
danificadas, casas ainda intactas, o cheiro de terro e morte.
Diziam que a grande pedra do Morro da Pedra iria cair. Subimos
lá e vimos que estava firme como nunca. Diziam que havia fendas no Morro do
Joubert, ameaçando as casas da Graciosa de Cima. Sim, havia uma fenda ocasionada
pelas chuvas, e ela estava em atividade, apresentando algum risco. Monitoramos sua
movimentação por três dias, até que cessou de se movimentar. Enquanto isso, os
bombeiros e a Defesa Civil pediram que as pessoas deixassem suas casas na
Graciosa de cima e de baixo. A medida era exagerada, mas ninguém tinha certeza
do que estava por vir. Era uma precaução exagerada, mas que evitaria perdas de
vidas, e ainda me parece bastante razoável.
Foram três dias intensos, onde eu, minha colega de CENACID,
a geóloga Fabiane Acordes, e o nosso líder de missão, Renato Lima percorremos vários
morros, andamos vendo várias situações. Foram também várias reuniões, com o
pessoal da Defesa Civil, os técnicos, e os voluntários. Dentre estes, conheci vários
conterrâneos que a ocasião juntou, desde funcionários da prefeitura, colegas,
vizinhos e curiosos, que sempre davam um tempero especial às nossas correrias.
Tive também oportunidade de voltar diversas vezes para
acompanhar o pós-desastre. Entre 2011 e 2014 fiz diversos campos com meus
alunos nos morros de Antonina e Serra da Prata, onde fizemos diversos trabalhos
e muitos ensaios. Boa parte destes trabalhos estão publicados em diversos eventos,
tanto no Brasil como no exterior.
Poucas vezes, no entanto, tivemos a chance de ter uma
devolutiva para a população. Por diversos motivos, acabamos por não conversar
sobre as pessoas sobre o que aconteceu. Há poucos anos, em 2017, por ideia de
meu aluno Gabriel Facuri, organizamos uma reunião com os moradores do bairro
Floresta. Foi muito interessante a troca. Aprendemos muito também. Podemos voltar
a falar só disso em outro momento.
Em geral, as vítimas destes grandes desastres passam por muitos
problemas quando o momento mais agudo do desastre termina. Sofrem pressões de
diversas formas, muitas vezes são impedidos de voltar as áreas que ocupavam. Muitos
apresentam traumas psicológicos difíceis de sanar. Crianças e adolescentes,
quando não tem assistência adequada, podem passar para o crime ou o desajuste
social.
Passaram-se dez anos. Mas existem ainda muitas pontas soltas
do desastre. Hoje, um medo de chuva toma conta das pessoas que se lembram dos
dias trágicos. Algumas, tem síndrome do pânico. Outras, estão desalojadas. Antonina
ainda não incorporou o bairro da Laranjeira, embora tenha até projetos de transformar
a área num parque. O próprio Morro da Pedra perdeu todo o chamativo que tinha
como um cartão postal da cidade. As pessoas ainda não sabem direito o que aconteceu.
Os estudiosos não deram uma devolutiva adequada de seus estudos à comunidade.
O que fazer num próximo desastre? Estamos preparados? Como podemos fazer para
enfrentar melhor um desastre semelhante?
Segundo um proverbio japonês, povo acostumando com todo tipo
de desastre, os desastres acontecem quando nos esquecemos deles. Fica a dica.
(também agradeço a Renato Lima, Fabiane Acordes, Carlos Augusto Canduca Machado e José Paulo Vieira Azim, sem a ajuda dos quais eu não teria conseguido estar e trabalhar na minha cidade quando esta precisou de minha modesta ajuda)
sexta-feira, 5 de março de 2021
O ANO DO CORONA
Já faz um ano.
Naquele mês de março, as nuvens
foram sumindo do céu. Os cumulo-nimbus eram cada vez menores e mais brancos, lá
longe no horizonte. Depois, o por do sol começou a ficar mais vermelho, e um
vento frio balançava os galhos das arvores. Era o fim da estação das águas.
Neste tempo, estávamos ainda
discutindo com os empresários da necropolítica, que faziam de tudo para
minimizar as “12 mil mortes” que fatalmente aconteceriam. Alguns falavam que só
matariam os velhos. Só. Não resolveríamos nada com pânico, diziam. O importante
era salvar a economia.
O tempo passou, e o álcool gel
invadiu nossas casas. Ainda sem saber como fazer com a nova situação, lavávamos
tudo obsessivamente. Para dizer bem a verdade, ainda lavamos. Cheguei a pegar
um eczema nos pulsos, de tanto sabão que usei.
No começo, não tinha máscara
ainda. Hoje, sabemos porque: não tinha máscara para todo mundo, e se dizia que
não precisava. Aí mandamos fazer máscaras de pano. Muita gente, subitamente
desempregada, começou a investir em fazer máscaras muito bonitinhas, de tudo que
é tipo de pano
Nos assustamos muito quando vimos
os caminhões cheios de corpos na Itália. Ficamos amedrontados com os corpos na
rua em Guayaquil.
Quando a primeira onda começou a
chegar, lenta como uma maré, tentávamos imaginar quando seria seu pico de contaminações
e mortes. Quando? Diante de algum resultado ligeiramente menor das
estatísticas, alguns incautos diziam que o pico já havia sido atingido. Mas não
era pico, ao menos não pra nós. Foi um imenso planalto de mortes diárias, que
atravessamos com mortes diárias muito elevadas e hospitais quase cheios.
O céu já estava claro, com um sol
cada vez menos intenso. Choveu um pouco, mas já estava seco, e o ar ficou mais
cheio de pó. Era o mês de maio chegando.
Em 25 de maio, em Minneápolis,
nos Estados Unidos, um policial matou um homem negro chamado George Floyd,
acusado de passar uma nota falsa de 20 dólares. Durante 8 minutos s 46
segundos, metodicamente, o policial Derek Chauvin ficou com o joelho no pescoço
de Floyd, terminando por matá-lo.
Poderia ser mais uma pessoa negra
morrendo nas mãos da polícia, seja nos Estados Unidos seja no Brasil, onde um
jovem negro é assassinado a cada 23 minutos, segundo dados de uma CPI no Senado
de 2015. Mas não. Não desta vez. Como uma grande onda, o clamor contra este
tipo de assassinato, cruel e metódico, varreu os Estados Unidos em grandes e
massivos protestos, que acabaram por atingir totó o mundo, até mesmo no Brasil,
tão longe e tão perto das ruas de Minneápolis.
“Não consigo respirar”, teria
dito Floyd. Pois foi justamente isso que milhares, centenas de milhares e enfim
milhões de pessoas sentiram durante todo o mundo, enquanto a epidemia se alastrava.
Primeiro foi Manaus que sentiu o
baque, depois uma a um os outros estados tiveram centenas e milhares de mortos.
Em agosto foram 100 mil, em janeiro dobrou, e agora estamos a seguir 300 mil
mortes, boa parte delas evitável.
Alguns até viram um fim durante
os dias quentes e abafados de setembro e outubro, com o céu repleto de cinzas e
poeira. Pelo segundo ano consecutivo, a Amazonia sofria com os fogaréus, enquanto
o Pantanal virava um imenso braseiro. Consta que ao menos 40 % do bioma foram
queimados.
Em novembro, quando o calor e as
primeiras chuvas anunciavam a estação das águas, o coiso na TV esbravejava
contra a vacina de seu inimigo, dizendo que quem tomasse iria virar Jacaré. As
mortes e contaminações, que estavam decrescendo, voltaram a aumentar. A
barbárie, essa nossa companheira tão conhecida, nos fez o ar da sua (des)graça:
as novas variantes do vírus surgiram, trazendo o caos novamente para Manaus.
Ali, como George Floyd, muitos
não podiam respirar, agora por falta de oxigênio. Foi a malfadada e maltratada Venezuela
que socorreu os manauaras em seu período mais crítico. Devastada pela ausência dos
botijões de oxigênio nos hospitais, as famílias compravam elas mesmas os botijões
para seus entes queridos, alertando o governo sobre as futuras vantagens da
privatização do ar.
Em plena estação das chuvas, o
verão, todo o país agonizante e sem ar. O orgulhoso Sul e suas colônias europeias,
o Sudeste e suas empresas modernas, o Centro Oeste e suas colheitadeiras e agrotóxicos,
todos jazem agora em filas intermináveis esperando por um leito de UTI. As
pessoas sem máscara, as pessoas se aglomerando em festas clandestinas, as
pessoas urrando que a economia não pode parar, mas o vírus não está nem aí. Indiferente
à economia e às explosões de inútil virilidade, o vírus trabalha e mata.
As nuvens voltam a sumir no céu,
lá longe no horizonte. Um friozinho invade nossas janelas. E a sensação de um
ano que não termina, que não terminou. Apesar das vacinas, apesar do cansaço geral,
precisamos superar a angústia e vencer a ignorância e brutalidade que nos
domina.
O ano do corona é um ano que tão
cedo não termina.
sábado, 4 de abril de 2020
QUANTO VALE UMA VIDA?
peguei daqui |
terça-feira, 24 de março de 2020
NÃO É A ECONOMIA, ESTÚPIDO!
Caminhões do exercito italiano carregando caixões de vitimas do coronavírus |
segunda-feira, 9 de março de 2020
A MARCHA DOS ESCOTEIROS (FINAL): "OS MILIONARIOS DOS QUILÔMETROS"
A vista da cidade de Antonina a partir da igreja de Nossa Senhora do Pilar, onde foi rezada a missa de agradecimento pelo bom fim da aventura dos rapazes. |
quinta-feira, 5 de março de 2020
A MARCHA DOS ESCOTEIROS 83: A CHEGADA TRIUNFAL
A chegada da tropa escoteira em Antonina depois de um Encontro em Joinville. Como seria a recepção dos rapazes na madrugada de 4 para 5 de março de 1942? |