domingo, 30 de junho de 2019

O DIABO NA TERRA DE VALE PORTO


foto: Eduardo Nascimento
Já faz algum tempo que o Sete-Peles mora em Antonina. Alguns dizem que ele sempre morou ali, “por isso Antonina não vai pra frente”. Outros acham que não, ele veio pra cá nos anos 90, quando houve o último suspiro do Porto. Ou que ele veio num destes Festivais de Inverno, gostou e ficou. Ou foi num carnaval? Eu nem sei dizer...
O que se sabe é que ele sempre evitou morar no centro, tão cheio de pecados e pecadores. Procurou casa no Batel, na Pita, a acabou morando uns tempos no Jardim Maria Luiza, num sobrado alugado. Depois, mudou-se para a Graciosa de Cima, onde mora num terreno estreito e com uma vista divina (?) para o mar e para as Serras.
O Capiroto é um senhor branco, classe média, de meia idade. Um homem de bem, de hábitos simples e metódicos. Todo dia de manhã bem cedo sai passear com seu cão preto e peludo, desce até a praça da Feira-mar, passa diante do Casarão dos Macedo chega até o belvedere da Matriz e, depois, volta pra casa. Outras vezes, mais animado, vai pelo Tucunduva e dá a volta no Morro do Bom Brinquedo, voltando pelo Batel.
O Coisa-ruim frequenta as missas na matriz, assim como assiste as celebrações especiais na igreja do Bom Jesus do Saivá. Também frequenta as igrejas protestantes tradicionais e as neopentecostais. Há quem diga que o viu num terreiro de Umbanda, mas acho que é maledicência.
Já foi convidado pra entrar no partido tal ou qual, ou sair pra candidato a vereador por diversos partidos. Até pra vice-prefeito foi sondado. A todos, o Grão-tinhoso explica que não gosta de política, e que prefere viver assim, quieto, no seu canto. Os políticos saem cabisbaixos de sua casa.
Ao que se saiba o Bode Preto nunca brigou com os vizinhos por causa de muros ou cercas. Também é bem silencioso e não incomoda ninguém com gritos ou música alta. Vive sozinho, com o seu cão preto. É recatado, e ninguém nunca o viu botando ninguém pra dentro de casa, seja mulher ou seja homem.
Ou seja, não é um antoninense comum. As pessoas na doce Deitada-a-beira-do-mar seguem pela vida barulhentas, brigonas, intempestivas, reclamando do vizinho, da prefeitura, da chuva. Falam do carro novo do vereador, da reforma na casa do assessor da prefeitura, do vizinho, do cunhado, dos buracos na rua, dos matos nas calçadas.
De noite, estão nas igrejas rezando ou no bar bebendo. Os da igreja acreditando na perdição dos que estão no bar e os do bar vendo afundar-se a vida dos que estão na igreja. Ao se encontrarem nas esquinas falam de coisas graves e sérias. Como sobre a corrupção dos outros e, sobretudo, concordam que são todos, os da igreja e os do bar, autênticos homens de bem.
Estes tempos, estava na terrinha, conversando e tomando um chopp com um amigo querido, na pizzaria ali no final da Avenida do Samba. Questionei o fato de o diabo estar entre nós. Meu amigo disse não se importar. “Ele não incomoda ninguém, paga o IPTU regularmente”, me disse ele.
Mas e o mal? Ele não é o mal? Perguntei. Este meu amigo, cínico e divertido como só um bom capelista pode ser, me olhou e disse: “Pára, Jeffinho!”. Sorriu, deu um gole no Chopp e continuou: “o mal não está nele, está em você. Você é que vê o mal nele”. Tive que concordar.
E ele continuou: “fico feliz de ele morar aqui, em Antonina, perto da gente. Você vê ele cada vez que sai pra passear. Ele é o nosso metro. Como ele é culpado de tudo, podemos continuar a viver como vivemos”.  E isso é bom?”, perguntei. Meu amigo me olhou com ares de dúvida: “Sinceramente, não sei, é assim que vivemos. Não é?”
Concordei com ele. Meu chopp estava esquentando. Dei um gole e fiquei olhando as mariposas a rodar ao redor das lâmpadas da rua. Os paralelepípedos estavam brilhando por causa da última chuva que tinha caído, fazia alguns minutos. 

sábado, 15 de junho de 2019

A NEVE EM ESTES PARK - Diarios (norte)americanos 5


As montanhas, próximo do Parque Nacional das Rochosas, Colorado
No domingo, tinha uma saída de campo, relacionada ao simpósio que estou participando. Iriamos conhecer algumas áreas ao redor que tinham sofrido com fluxos de detritos. E era nas Rochosas!  Estava tão feliz e ansioso em fazer a tal saída de campo, que me atrapalhei um pouco. Estava preocupado em perder a hora. Fico sempre preocupado em ficar preocupado com a hora. E, em geral, quando isso acontece, eu perco o sono.
Entretanto, desta vez estava cansado da longa viagem de avião, e tinha outra coisa a meu favor: uma diferença de três horas a mais. Pude descansar o suficiente e ainda chegar a tempo.  A saída era nos fundos da grande casa dos estudantes, que se chama Ben Parker Center. Trata-se de um prédio grande e que funciona como um centro de conferências. No térreo, tem ainda uma autêntica loja de departamentos que vende produtos da marca Colorado School of Mines.
Quando cheguei lá no ponto de encontro da excursão, tinha uma verdadeira legião estrangeira. No caminho, havia conhecido um professor italiano, muito simpático. Conheci também um professor coreano, e conversamos bastante. Quando todos chegaram, os anfitriões americanos nos colocaram no ônibus para partir.
Era interessante o caldo de gente naquele ônibus: ceilandeses, japoneses, coreanos, taiwaneses, neozelandeses, ingleses, suíços, americanos e, é claro, um brasileiro.  Todos especialistas em fluxos de detritos.
A viagem foi muito interessante. Começamos pela cidade de Boulder, que sofreu com diversos escorregamentos em 2013. Nada que meus conterrâneos antoninenses não saibam. Foi bastante feio, com muita destruição, embora não tivessem sofrido perda de vidas.  Alguns lugares, como vimos mais adiante na cidade de Lyon, ainda estavam reconstruindo suas casas, cinco anos depois do acidente.
Golden e Boulder estão a cerda de 1700 m de altura, no platô do Colorado. É uma área muito plana. E onde está a maior parte da região metropolitana de Denver. Depois, vem uma pequena linha de morros, o Front range. Muito interessante porque existem várias camadas de rocha com mergulho alto (os hog-backs) que tornam a paisagem mais bonita. E, depois do Front Range, começa a montanha propriamente dita.
Foi um dos campos mais bonitos que já tive. As montanhas maravilhosas e nevadas, cheias de charme e beleza. Não é preciso dizer que estava um frio danado e as roupas que levei deram pro gasto, mas estava frio.
As montanhas eram nevadas ou pedregosas. Mas, na encosta, eram comuns os pinheiros, que desciam até as pequenas planícies. Aqui e ali, nestas planícies no meio do parque, viam-se manadas de cervos pastando tranquilamente. Quase sempre eram bandos de fêmeas e machos jovens, pastando na grama verde do fim da primavera. Coisa bonita de se ver.
Almoçamos numa antiga estação de esqui. a estação de Estes Park funcionou de 1940 a 1992, quando parou por não ter mais neve. Tem gente por aí que ainda acha que há um aquecimento global e que existem indícios que o clima está mudando. O Estes Park é um sinal disso.
Aqui e ali, nas encostas do Estes Park, nas drenagens e entre os pinheiros, havia umas manchas brancas. Algumas estavam meio sujas, visas de longe. Fiquei intrigado. Fui lá ver. Era gelo, com as bordas já derretidas, e que era como uma areia grossa na mão. 
Perguntei aos colegas ali ao lado se era neve. Eles se espantaram comigo porque eu não conhecia neve, e eu fiquei com um pouco de vergonha. Logo desfiquei. Afinal, não conhecia a neve mesmo...No entanto, uma coisa é certa: com vergonha ou sem vergonha, foi meu primeiro contato com a neve. Voltei para o ônibus bem feliz.

quarta-feira, 12 de junho de 2019

UMA TARDE EM GOLDEN - Diários (norte) americanos 4


Feirinha semanal de produtos naturais em Golden; ao fundo, as capas de basalto mesozoico, parecendo muralhas;
Depois de alguns contratempos, consegui achar o alojamento estudantil da Colorado School of Mines, onde me encontro agora. A princípio, ninguém dos meninos na recepção do campus sabia do que se tratava. Foi uma pesquisadora que estava por ali, a Nicole, que tratou de me levar ao alojamento. Viva Nicole! Agora, finalmente, estou em casa em Golden.
No dia seguinte, sai para conhecer o campus da Colorado School of Mines. É um campus muito bonito, e bastante grande.  Tem várias e várias quadras, bem típica do que se conhece dos campi americanos, com prédios,  grama e ruas arborizadas e tranquilas. Dispersos pelas quadras, estão prédios de vários institutos. Achei o prédio da Engenharia de Minas, que é o carro chefe da escola, e o prédio da Geologia e da Química. Tem também a sede local do Serviço Geológico Americano, o USGS.
Aqui, pelo que me falou Frances Renger, geólogo do USGS, aqui em Golden trabalha uma equipe de cerca de 100 pessoas que é responsável pela parte de escorregamentos – que é o motivo do simpósio para o qual estou aqui – e um centro de estudos de terremotos, referência no país. O USGS é uma das grandes referencias mundiais da geologia.
A missão do USGS, gravada no seu logo, diz tudo: Ciência para um mundo em transformação. Pra nós, na insondável e elegível burrice que nos assola, parece coisa de outro mundo. Estamos, no Brasil, destruindo literalmente nossos serviços geológicos. Fazendo conhecimento virar pó. Por aqui, com Trump e com tudo, o USGS tem trabalhos técnicos em diversas áreas, inclusive em educação. E tem um papel importante nas decisões do governo federal relativas à geologia e ao meio ambiente. 
O campus da Colorado School of Mines é todo gramado e arborizado, limpinho e cheio de esculturas. Algumas de bom gosto, outras nem tanto. Tem prédios desde 1874, quando a escola foi fundada, até prédios modernos ainda em construção (só pra lembrar: nossa mais antiga escola de minas, a Escola de Minas de Ouro Preto, é de 1876). 

Alguns destes edifícios mais antigos apresentam na fachada colunas coríntias cheias de adornos e enfeites. Em geral, não gosto muito destas fachadas grandiosas, barrocas. Entretanto, os estilos são os mais diversos, desde o neoclássico mais feioso até o moderno mais esquisito. Outros, que parecem ser dos anos 80 parecem os nossos indefectíveis “pinotinhos”, só que mais grandiosos.
Saí para andar pela cidade de Golden. Ela é muito limpinha e organizada. Ruas que se cruzam em ângulo reto, fachadas meio feiosas, mas charmosas, lembrando o estilo velho oeste. Nas calçadas e nas casas, inúmeras decorações com um arenito vermelho muito característico da cidade. Na avenida Washington há uma grande instalação com as inscrições “Welcome to Golden”. De tão brega até parece bonita.
Logo depois, cruza-se a ponte do Clear Creek. É um rio de montanha, com forte correnteza e cheio de blocos de pedra. De rocha, perdão! A água não está muito clara, apesar do nome do rio.  Nesta época do ano, uma época chuvosa nas montanhas, o degelo ainda está operando forte. Logo, a água tem uma cor vermelho sujo.
Era um sábado ensolarado. Havia uma feirinha de produtos naturais num espaço aberto. Barraquinhas organizadas, vendendo desde frutas (poucas), verduras e legumes orgânicos, além de pães de todos os tipos. Não vi comida mexicana. E ainda haviam barraquinhas de mel, artesanatos, produtos esotéricos. Tudo o que uma feirinha tem direito. Bem limpinha e arrumadinha. 
Havia muita gente no parque, ao longo do rio. Gente passeando com cachorro, de bicicleta, a pé. Famílias, casais, grupos de amigos. Um grupo de bombeiros (acho que voluntários), todos de camiseta vermelha, estavam tendo alguma espécie de aula de campo observando o Clear Creek e sua correnteza. Mais acima, havia pessoas fazendo boia cross e canoagem. Um destes fazia proezas admiráveis com seu pequeno caiaque, numa pequena queda do rio, mantendo-se sempre no lugar e dando cambalhotas, virando de um lado para outro. Muita gente parou para ver. Eu incluído.
O entorno da cidade, que fica numa vale, é composto por grandes muralhas de basalto. Uma delas se destaca, por parecer uma pequena mesa. Dão um toque geológico especial para a pequena Golden, tão ligada á geologia e à história da mineração.
A tarde estava bonita, mas eu precisava descansar. O dia seguinte seria intenso, com a nossa excursão para as rochosas, para ver os grandes fluxos de detritos por lá. Voltei para o alojamento e procurei dormir o sono dos justos. Justamente.  

segunda-feira, 10 de junho de 2019

OS CÉUS DE DENVER - Diários (norte)americanos 3


briga de nuvens no céu de Denver, Colorado
Para quem estava apreensivo com a viagem até Denver, tudo correu direitinho. Fui um dos últimos a entrar, depois de ser chamado e verificado pelos funcionários da companhia aérea. Depois de olhar tudo, listagens, cartões de embarque e passaporte, me colocaram na rampa de acesso com um “nice trip, Mr Picano!”. Não perdi tempo, e corri para o avião.
O voo para Denver foi tranquilo. Espremido entre dois adolescentes, que só tinham olhos e ouvidos e tudo o mais que que se queira para seus celulares, fiz uma viagem tranquila, lendo meu livrinho e vendo umas comédias no avião.
A paisagem era monótona, uma grande planície que se estendia até onde a vista alcançava. Ao redor de Dallas não se via muitos sinais de agricultura. Só mesmo perto de Denver é que o ambiente ficou mais verde. Era uma grande colcha de retalhos com quadrados ora mais ora menos verdes e alguns circulares, por conta dos pivôs de irrigação.
Quando o avião virou pra aterrissar é que vi pela primeira vez as Rochosas. Um espetáculo fascinante, uma grande barreira azulada ao fundo, onde termina a grande planície. Aqui e ali, alguns picos nevados. Picos nevados dão uma sensação diferente e bonita, principalmente quando você está de longe.
Ao chegar no aeroporto de Denver, fui direto pegar minha mala. Estava apreensivo, pois não sabia direito se ia achá-la ou não. Já ouvi histórias terríveis de extravios de malas em aeroportos americanos. Quando eu entrei no salão de despacho de bagagens eu já estava pensando em como ia ficar vários dias com a roupa do corpo.
Minha mala, com alça, estava paradinha no corredor, lado a lado com outras malas de outras pessoas que devem ter se perdido em algum lugar. A pessoa se perde, mas a mala não. Não tinha ninguém ali pra me exigir o ticket. Peguei a mala e fui embora.
Demorei um pouco pra me entender com a máquina que vendia os bilhetes de trem. Se não fosse a intervenção do guardinha da estação, não teria conseguido. Me senti um analfabeto funcional. Mas o guardinha me tranquilizou: “essas maquinas são malucas mesmo. Ninguém entende o que elas querem”. Agradeci e fui embora.
O resto da viagem foi tranquilo. Peguei um trem até o centro de Denver, e com o mesmo bilhete, que ninguém me cobrou, cheguei até a cidade de Golden, onde estou agora. Nós, brasileiros, em geral nos espantamos com essas coisas. Pensando na nossa situação, dá uma sensação de falência da nossa cultura. Quando vamos ter coisas controladas pela nossa confiança mútua?
O céu estava limpo, mas logo nublou com as nuvens vindo das cordilheiras nevadas. O céu de Denver era um céu azul bonito, de verão. Lembrei-me até dos versos de Mário Quintana sobre os belos céus azuis de Porto Alegre. Aqui e ali, algumas nuvens fofas e gordinhas da estação. Logo o céu, que parecia ter um pé direito muito mais alto, nublou com a chegada das nuvens de chuva. Uma chuva de verão, cheia de vento e com alguns raios aqui e ali.
Protegido pelo vidro do trem, foi bonito ver a chegada daquela chuva. Lembrei até de um dia de infância, na janela de minha casa de Antonina, vendo uma forte tempestade de verão chegar, junto com minha tia Zila.
Era assustador o negrume da chuva, e o vento que ela trazia. Tia Zila me confortou, me fazendo ver que era o poder da natureza. E ele era bonito e não assustador. A forte tempestade de verão passou, como todas passam. No entanto, sua passagem me deixou feliz e não mais assustado com seu poder. Passei a mostrar para meus filhos a chuva que chegava, segundo os mesmos princípios de beleza e força. Nenhum deles se tornou meteorologista, mas acho que hoje enfrentam chuvas numa boa, sem medo.
Logo peguei o trem para Golden, na bela estação central de Denver. Toda remodelada, ela é bem bonita e merece mais que um reles translado. É uma estação do século passado, bem grande, que foi recentemente reformada e está cheia de lojas cafés e livrarias. mas fui pegar meu trem.
À medida que o trem chegava perto de Golden, a chuva e as montanhas ficavam mais perto. É um trajeto bem bonito e bem rápido. Na beira da estrada existem diversos conjuntos residenciais de tijolinho vermelho aparente, lembrando as vilas inglesas,  de casas todas iguais. Até os condomínios de prédios baixos tem esse formato.
O trem finalmente nos deixou num grande complexo de prédios, que compreendem o Distrito do condado de Jefferson, ao qual pertence a cidade de Golden. Sim, o nome é esse e eu fiquei procurando umas placas para tirar selfie com meu nome. Mas o ônibus chegou antes. Estava próximo ao meu destino.

domingo, 9 de junho de 2019

CORRER EM AEROPORTO - Diários (norte)americanos, 2 (a missão)



Odeio correr em aeroporto. Detesto. Convenhamos, não é o melhor lugar pra correr. Está mais para o estresse que para a saúde. Correr no aeroporto é correr num lugar cheio de gente, cheio de pisos diferentes, escadas, escadas rolantes, um infindável número de quiosques de coisas no seu caminho. E temos que correr.
Em geral, não é uma corrida simples. Além de ser uma corrida de obstáculos, você ainda está carregando alguma coisa. Uma mala, uma mochila, um pacote com o presente que você comprou para alguém querido, suas blusas de lã...a lista é infindável.
Já fui bom de corrida. Tive tempos memoráveis antes de meus joelhos me traírem. Hoje, correr é praticamente só no aeroporto. E eu detesto. Correr contra todos os que estão no seu caminho, tenham eles culpa ou não de estar na sua frente. Nunca tem nem nunca terão culpa, exceto os distraídos crônicos, dentre os quais me incluo. Correr contra o tempo, correr para pegar um check in aberto, correr para não perder o voo. Correr pra alguma coisa que vai acontecer e você não tem tempo.
Ontem, quando entrei nos Estados Unidos, entrei por Dallas. Passei por toda a parafernália da imigração. As entrevistas até nem são muito complicadas, e o pessoal se mostrou atencioso. O problema é passar pelos tais detectores. Tive que, como todos, tirar os sapatos, os cintos, estripar a mochila e abrir tudo. Esvaziar os bolsos, colocar tudo para fora.
Dentro daquele escâner de gente, é você praticamente como veio ao mundo, tirando algumas roupas por cima. Fiquei com medo. E se o escâner mostrasse quem eu sou? Quem eu realmente sou? Anos e anos de análise e terapia (freudiana e lacaniana), de meditações, de conversas profundas e discussões de relacionamento – vou encontrar quem eu sou no escâner de um aeroporto no Texas? Bizarro.
Depois, de passar pelo escâner, tive que correr. Fiz de tudo para não correr, mas meu voo estava ora num canto ora no outro, e fiquei perdido entre os balcões de embarque. Quando eu achei, foi depois de uma maratona e uma meia maratona e mais o complemento de uns 100 metros rasos com um “peixinho” na chegada. No entanto, apesar de todo este esforço, perdi meu voo.
A funcionária do balcão da companhia aérea não deu muita bola para meu sofrimento. Não teve qualquer pressa em fazer suas funções. Cada coisa a seu tempo, “no rush”. Entretanto, apesar de sua cara de poucos amigos, Cindi (era o nome no crachá) me deu uma outra possibilidade. Um voo no outro terminal. Outra viagem dentro do aeroporto. Trem, escadas rolantes, corredores imensos e vazios. Aqui estou. Espero nunca mais correr em aeroportos.
Estou aqui, em outro guichê, em outra espera, cheio de gente ansiosa ao meu redor. Eu tento esconder minha ansiedade. Mas estou ansioso. Será que vou conseguir embarcar? Será que vou ficar por aqui pra sempre, como aquele filme do Tom Hanks? Menos, Jeffinho, menos...
Só fico pensando na minha mala, que já despachei...será que um dia vamos nos encontrar?

sexta-feira, 7 de junho de 2019

FAZER A AMÉRICA - Diarios (Norte) Americanos 1

https://bit.ly/2XyHqBI
Estou escrevendo do aeroporto de Guarulhos, enquanto aguardo um voo para Denver, nos Estados Unidos. Estou indo participar de um simpósio internacional sobre fluxos de detritos, que tem sido meu assunto de pesquisa nos últimos anos.


Estou meio cansado com a correria dos últimos dias. Véspera de viagem é sempre assim: um monte de pendências para serem ajeitadas antes de ir. Agora não é diferente, mas com um grau de intensidade maior que as últimas vezes.


No caminho do aeroporto, dormi no ônibus e acordei já na marginal, com seu sol fraquinho de início de inverno. Até o trânsito da Marginal parecia fraquinho. Agora, mais a noite, o tempo esfriou e chega a estar nublado.


Aqui ao redor de mim, no aeroporto, começa a se formar o burburinho de passageiros esperando ser chamados. Os funcionários da companhia aérea começam a se posicionar em seus postos. Um misto de ansiedade e impaciência toma conta das faces das pessoas, esperando os serem chamadas para o avião.


Eu estou muito ansioso. Vai ser minha primeira vez nos Estados Unidos, e estarei sozinho. Não domino o inglês como gostaria, o que me dá doses adicionais de ansiedade. Mas tudo bem, ansiedade se vence, se domina e vai adiante. No entanto, existe outra incógnita: os Estados Unidos: O que vou ver por lá?


Existem vários Estados Unidos, e vou conhecer uma pequena parte. Vou ficar a maior parte do tempo na cidade de Golden, onde fica a Colorado School of Mines, uma das mais prestigiosas escolas de mineração do mundo, e onde vai ser o simpósio. Devemos ter inclusive uma saída de campo no domingo para visitar algumas áreas de debris flows nas Montanhas Rochosas. O que me deixa bem feliz. Vou acrescentar mais uma cadeia de montanhas no meu currículo.


Todos nos temos uma ideia dos Estados Unidos, mesmo os que, como eu, jamais colocaram os pés por lá. Essa visão nos é dada pela onipresente indústria cinematográfica americana, sempre a nos conceder narrativas as mais diversas sobre o país e seu povo.


Hollywood nos deu tanto narrativas de chave heroica, com grandes personagens que representam a paz e a liberdade contra os maldosos vilões que querem destruir o sonho americano. De outro, narrativas de chave crítica mostrando as mazelas da sociedade, com seus heróis dúbios e seus finais irônicos, como se dissessem:  isso aqui não é bem assim como vocês pensam.


Fazer a América. Eis um sonho persistente e que se mostra muito forte, mesmo atualmente. Como não querer uma vida de muito trabalho, mas com uma casa e um belo gramado? Nem sempre o sonho é a realidade. Mas, para quem vem de outros sonhos, e mesmo de alguns pesadelos, parece que o sonho americano é possível.


Cada um têm seu sonho, seu desejo e, portanto, a sua América. Qual será a minha América, dentro do estreito recorte que vou ter pelos próximos dias?