sábado, 21 de outubro de 2017

A CHUVA DIFÍCIL



Tá difícil chover por aqui.
As nuvens passam, passam e nada. Depois de ventar a noite inteira, o dia amanhece de sol. Limpinho, limpinho. Sem nem uma nuvem. Depois, o calor vai aumentando devagar. Os últimos dias estava insuportável de quente. O ar, extremamente seco. O nariz sofre. A sensação de boca seca nos persegue o tempo todo.
No jardim de casa, é só esquecer de molhar um dia e algumas plantas já começam a murchar. Haja água. E lá vamos nós a molhar as plantas. A terra vai engolindo avidamente toda a agua que colocamos. Quase dá pra ouvir o glut-glut-glut telúrico.
Choveu, mas muito pouco. As chuvas que passam por cima da gente nestes dias de primavera nos dão falsas esperanças. De noite, com o barulho do vento, me confundo esperando ouvir o som da chuva. De manhã, ao abrir as portas e ir para fora tomar o café olhando as plantas, me sinto enganado pelo vento.
As pessoas tentam olhar nas previsões do tempo, sempre tão seguras. Probabilidade de chuva: 57%. Não vai chover hoje, não vai chover amanhã. A chuva que estava prevista para o domingo passou por cima e nada. A esperança, ressequida.
As notícias que recebemos também andam ressequidas e desalentadoras. Na semana que passou, vimos os poderes da república batendo cabeça, disputando nacos de poder, inventando interpretações.
Pode-se dizer que desde que Aécio, esse semeador de ventos, começou a duvidar dos fundamentos da democracia, estamos todos ladeira abaixo. Do resultado das eleições ao golpeachment tudo o que tínhamos por regras foi se esfarelando. Agora, pau que bate em Chico não bate em Francisco. Precisamos antes perguntar para Gilmar Mendes.
O STF se acovarda. Bate em quem está fraco e não se sustenta contra os que estão fortes. A lei, ora a lei! O Senado da República, nada republicano, transforma-se numa agremiação que protege os seus. Seus comparsas.
Na Câmara, vigora a proteção ao presidente apanhado com a boca na botija em relações espúrias com o poder econômico. A ele é dado o benefício da dúvida que foi sonegado durante a consecução da deposição da presidenta eleita. A ele não se questiona o toma-la-dá-cá realizado com as bancadas do atraso a cada pedido de abertura de inquérito.
A fatura da “governabilidade” é paga regularmente. Nesta semana a bancada dos grotões e do atraso viu o governo estabelecer uma portaria que restringe a definição de escravidão e dificulta a atuação dos auditores.
Com isso, a escravidão volta ao interior do país. Quem quiser veja as consequências aqui.
O Brasil teve um passado tenebroso em termos de escravidão. Fomos o ultimo pais da américa a banir a escravidão num processo lento e doloroso que até hoje gera conflitos em nossa sociedade.
Com essa portaria, segundo os especialistas, vai facilitar a ação dos “gatos” aliciando mão de obra barata no interior do pais. A maior parte em projetos agropecuários na Amazônia. Mas isso não vale nada.
Para os donos dos grotões do pais, é esta a liberdade que eles querem. A liberdade do liberalismo brasileiro, essa aberração conceitual, é a liberdade de explorar sem freios a mão de obra. Nosso liberalismo tem as mãos manchadas de sangue.
Enquanto isso, tentamos levar nossas vidas. Quase sempre respondo um tudo bem com um “eu vou bem, mas o resto está uma merda!”. Eu estou bem. Tenho saúde, família, trabalho. Mas ando preocupado com a falta de chuva e com a falta de esperança.
Dias melhores virão. Dias melhores verão. Vai finalmente chover e as plantas do jardim vão ficar menos ressequidas. As tempestades do fim da primavera vão balançar as árvores e criar ravinas no solo. Mas o verão vai chegar.
No entanto, no deserto que se transformou este país, teremos alguma esperança?

sábado, 14 de outubro de 2017

O HIPOCONDRÍACO DOS MORRETES


Antônio Vieira dos Santos  
(Antonina em 1854 - parte IX)

Não resta dúvida: Antônio Vieira dos Santos (1794-1851) era um hipocondríaco.
Todos nós temos nossos defeitos, e a hipocondria não é dos piores. Mas Vieira dos Santos -  um comerciante nascido em Portugal e que viveu a maior parte de sua vida em Paranaguá e depois Morretes – tinha também outros defeitos e virtudes. Entre as virtudes/defeitos, estava o habito de tudo anotar e escrevinhar.
Não por acaso Vieira dos Santos foi o autor das Memórias Históricas de Paranaguá e Morretes, que lhe deram fama póstuma. Mas ele fazia ainda mais. Durante toda sua vida, ele anotou obsessivamente em diversos cadernos quase tudo que achou importante em seu quotidiano. Nascimento, casamento, mortes, acontecimentos os mais diversos, tudo ele anotava. 
Os cadernos de anotações de Vieira dos Santos, recentemente publicados pela editora da UFPR, são uma boa fonte de informações sobre a vida e o quotidiano das pessoas no século XIX no litoral do que alguns anos depois seria chamado de Província do Paraná.
Assim, como escrevinhador e hipocondríaco, ele nos legou informações importantes sobre a saúde em Morretes, Paranaguá e Antonina.
Vieira dos Santos, em suas anotações, faz uma listagem dos livros que possuía. É uma coleção modesta de um modesto comerciante. No entanto, muito se pode ler nesta listagem.
Nela, como em toda boa biblioteca de hipocondríacos, constam vários livros sobre medicina e doenças. Entre eles estava o livro “Medicina Doméstica ou Tratado Completo dos Meios de Conservar a Saúde”, um livro de medicina pratica e caseira escrito pelo médico inglês William Buchan (1729-1805).
Antes do popular Chernoviz, que seria o grande tratado de Medicina popular no Brasil na segunda metade do século XIX, o livro de Buchan era o grande tratado médico popular da época. Trata-se de um grande livro de medicina popular, escrito em linguagem simples e dando práticas de cura simples e práticas. Como o Doutor Google hoje.
Publicada em inglês em 1769, a obra teve diversas traduções para o português entre 1790 e 1840. Não sabemos qual a edição do livro de Vieira dos Santos. A edição que consultamos, de 1790, era uma tradução do francês para o português, neste caso o doutor Francisco Pujoll de Padrell filho, impresso na Typografia Rollandiana de Lisboa.
Assim como o Buchan, Vieira dos Santos ainda tinha o “Aviso ao Povo acerca de sua saúde”, do médico suíço Auguste Tissot (1728-1797). Escrito em 1773, é outro manual destinado as parteiras e aos sangradores e cirurgiões. O livro trazia informações e procedimentos para estes profissionais, na ausência de médicos.
Além destes best-sellers, Vieira dos Santos ainda possuía os “Princípios de cirurgia”, de autoria de Jorge de La Forge, do qual nada encontramos. Também nada encontramos do livro “Descrição compendioza das enfermidades mais crônicas dos exércitos”, pelo Barão de Wan Witen, ou do “Ensaios sobre a arte de formular”, de A.I. Abiber, datado de 1811.
Já o “compendio de ptos (sic) e vários remédios de cirurgia”, de Gonçalo Ruiz de Cabreira é conhecido na medicina portuguesa. Este último sabe-se que foi um importante medico português do século XVII, que compilou diversos tratados antigos de medicina.
Como não poderia deixar de ser, Vieira dos Santos também seguia os preceitos da homeopatia. Em sua biblioteca constam “A pratica elementar da homoeopathia pelo Doutor Mure“, de 1847. Tendo como subtítulo “Conselhos Clinicos, para qualquer pessoa, estranha completamente à medicina, poder tratar-se, e a muitos doentes, conforme os preceitos da homoeopathia, confirmados pelas experiências dos Doutores Aegide, Alther [...]”, é também um importante manual de praticas medicas. A tradução para o português foi feita pelo medico brasileiro João Vicente Martins (1810-1854).
Também estava nas estantes de Vieira dos Santos o livro “Noticias elementares de homeopatia e manual do fazendeiro, do capitão de navio e do pai de família, contendo a acção dos 24 principais medicamentos”. Esta era uma publicação do Instituto Homeopático do Brasil. A homeopatia estava chegando, e Vieira dos Santos não poderia deixar de ter estes livros.
Era uma medicina que se popularizava, e que chegava à casa das pessoas. No Brasil, muitos livros foram escritos para que os patrões cuidassem das doenças mais comuns de seus escravos (o fazendeiro), dos viajantes (o capitão de navio) e a medicina doméstica (o pai de família). Num país onde predominavam as práticas tradicionais, a medicina científica fazia sua entrada. Como bom hipocondríaco, Vieira dos Santos estava a par de tudo isso. 
Era uma gama de livros médicos respeitável para um modesto caixeiro da Villa dos Morretes. Munido desta ampla gama de informações e conhecimentos, Vieira dos Santos estava pronto para enfrentar os males que viriam a abater a ele e sua família.
(continua)

sábado, 7 de outubro de 2017

A NOITE DOS BESOUROS



Ontem fez muito calor, e os insetos revoavam pela casa e pelo jardim. Ao longe, trovoadas e uma lua pálida prenunciavam a chuva que viria. No ar abafado, os besouros voavam, com seu jeito desengonçado. Diversos tipos de besouros, muitos besouros.
Dizem os entomologistas que o tempo presente não é a Idade do Homem, e sim a Idade do Besouro. Eles são o gênero mais comum, com maior quantidade de espécies. Um desses entomólogos, especializados em besouros, chegou a dizer: “Deus, se ele existe, tem uma especial predileção pelos besouros”.
Pois ontem à noite em meu jardim os besouros voavam. As lagartixas, esses seres mesozóicos, saiam de seus esconderijos para rodear as lâmpadas do jardim. Quando retornavam a seus esconderijos, estavam com a barriga preta de insetos. Todos eles: moscas, mariposas, formigas, vespas. E besouros.
Hoje de manhã, quando fui ao jardim, pude ver um desses besouros. Deitado de costas, o belo coleóptero jazia de costas no piso frio da varanda. Algumas formigas tentavam tirar alguma vantagem: pegar um pedaço de pata, de antena, tentar carrega-lo, qualquer coisa. Tinham muita pressa as formigas. O besouro, morto, parecia que estava com uma as patinhas levantadas como se pedisse socorro. Não existe socorro para besouros que caem de costas.
Ao ver o espetáculo da natureza e sua faina, comecei a me lembrar dos nossos tempos, quentes e abafados. Nas pessoas que não olham para os lados. O pobre besouro ali estendido e prestes a ser esquartejado pelas formigas éramos nós.
O outro está sempre errado. Ao outro não perdoamos a cor partidária, suas crenças, sua sexualidade. Não perdoamos a cor de sua pele, o jeito de seus cabelos, a maneira de se vestir. Não perdoamos o que dizem, o que cantam, o que escrevem. Um novo tempo de perseguições e proibições parece se avizinhar.
São noites quentes, como a noite de São Bartolomeu, a noite dos Cristais, a noite das Facas Longas. Nas noites longas e quentes os homens saem para matar os seus diferentes. A noite quente prenuncia a chuva.
Séculos de aprendizado com estas barbaridades não parecem comover os novos perseguidores. A moralidade surge como desculpa para novas imoralidades. As figuras públicas se escondem sob o véu da moralidade para proibir.
A velha Europa aprendeu no passado que perseguições e intolerância geram somente mais perseguição e intolerância. Hoje, todas estas lições parecem esquecidas. O ódio surge da intolerância. E aí vem a perseguição, a ameaça. O que o outro é não me ameaça. O que me ameaça é impedir o outro de ser. Se impedem o outro, logo depois vão impedir a mim.
O avanço das ideias intolerantes preocupa. Hoje, sabemos como começa e temos uma ideia de como termina. As noites quentes prenunciam chuva. As chuvas terminam com muitos insetos mortos no chão, devorados pelas formigas.
Parei por aí. Tenho muita coisa para fazer. Hoje o dia amanheceu de chuva e frio. Tenho muitos besouros para varrer no chão. É um dia cinzento e triste esse.