terça-feira, 16 de outubro de 2018

VOLTAR PARA 40, 50 ANOS ATRAS



Escoteiros desfilando em Antonina nos anos 70
Em recente visita a um quartel do Bope, o Messias revelou seu sonho: “queria fazer o Brasil voltar 40, 50 anos atrás”. Disse isso com a sinceridade insana que o caracteriza. E confesso que fiquei apaixonado pela ideia. Para mim, seria voltar à infância e parte da adolescência. Voltar 40 a 50 anos, significaria eu voltar a ter entre 5 e 15 anos de idade.
Num instante, fui levado para a Antonina de minha infância, terra adorada, minha pátria no sentido mais puro do termo. Voltaria para os jogos de bola na rua, para os desfiles de 7 de Setembro fardado de escoteiro, para os bons amigos que você  tem neste período da vida. Revi minha vida como uma antiga foto preto e branco.
Bolsonaro teria neste período, entre 13 e 23 anos. Também uma idade boa. Adolescência. Tempos de formação. Seria o período que ele passou desde o final do colégio aqui no interior de São Paulo até o quartel, já tenente. Como não invejar voltar à juventude?
Neste período tocava no rádio a bossa nova. A Mangueira de 1973 falou da lenda da Mãe do Ouro, lenda da minha terra: "ola-lá, olá ô bábá! É a Mãe do Ouro que em nos salvar!". Tocava também outras coisas esquisitas, como “assassinaram o Camarão”, ou “Aonde a vaca vai, o boi vai atrás". Mas tudo bem. Era a juventude.
Certa vez, eu e minha irmã colocamos um disco na vitrola de minha tia. Ela veio correndo da cozinha e tirou o disco, entre zangada e assustada. Era um disco de Geraldo Vandré, com uma música chamada “Caminhando”.
Na primeira série, uma colega de sala saiu da sala chorando, não voltou mais para a escola, a saudosa Escola de Aplicação Rocha Pombo de Antonina. Tinham prendido o pai dela, e ela estava muito triste. Ficamos muito assustados com a possibilidade dos nossas pais também desaparecerem e irem presos.
Mas, como nos explicaram depois, o pai dela era um “comunista”. A palavra era dita numa mistura de asco e desdém, como ainda hoje escuto alguns falando, como se ainda não tivessem saído da Guerra Fria. Não era comunista, pensava eu, aos sete anos. Era só o pai da nossa amiga.
Desfilávamos no Sete de Setembro, em grandes desfiles repletos de crianças. Certo dia, fui chamado para ler uma poesia no coreto da praça. Menino ainda, dei conta do recado diante do microfone, ainda que muito nervoso, as palavras saindo ásperas da boca. Nem me lembro do que se tratava o poema, sei que tinha “Brasil varonil” e “porvir”.
Nem todas as casas tinham telefones. Chamavam do vizinho, “telefone pra você”. Era o tal fone molecular. Cartas demoravam uma semana de Antonina para Londrina e quase um mês, se fosse para fora do Brasil.
Há cinquenta anos atrás o Brasil vivia o tal do milagre econômico dos generais. A economia crescia. As pessoas de classe média podiam ter carro, telefone. Nós tínhamos o melhor futebol do mundo e nossos estádios estavam cheios de craques: jogavam por aqui Zico, Rivelino, Carlos Alberto. Os mais velhos entre nós ainda se lembravam de ter visto Pelé jogando. Mundo bom.
Como não amar e querer voltar a este mundo, fiquei me perguntando. Imaginei, por exemplo, Carlos Alberto Brilhante Ustra, nosso Eichmann, saindo no fim da tarde do trabalho e indo para casa, ver a mulher e os filhos. Homem de bem.
Seu trabalho, hoje se sabe, era fazer crianças, como eu era na época, assistir seus pais serem torturados. Era estuprar moças “comunistas”. Era dar choque no pinto daqueles comunistas filhos da puta. Eles bem mereciam. Todo mês, Ustra recebia um holerite com o seu salário, pago com o dinheiro do contribuinte.
Os casos de corrupção, como o que resultou na exoneração do governador do Paraná Haroldo Leon Peres, em 1971, eram abafados. Lembro que a Veja, que então era uma revista decente, deu a notícia. A revista foi apreendida nas bancas. Meu pai, não sei como, conseguiu um exemplar. Passei muito tempo entregando a Veja para os amigos de meu pai lerem, na surdina, levando para a casa de cada um embrulhado em papel de pão.
Era também um mundo onde não podíamos falar com os filhos de mães desquitadas. Ainda não havia a lei do divórcio. Mulheres desquitadas eram perigosas, entendíamos nós, em nossa ideia infantil.
É exatamente este o mundo que o capitão quer voltar. De seus tempos de tenente. Um mundo onde homens brancos – e militares – podiam tudo. Livre, leve solto, os militares eram a lei. Quantas meninas ele não “comeu” por causa da farda?
Um mundo onde ser mulher era mais difícil. As mulheres não se separavam dos maridos por medo de perder a estabilidade econômica. E a violência doméstica? Disso não se falava. Se olhava, se percebia e não se falava. Mundo bom, este.
Na Amazônia, a chegada dos grandes projetos de estradas e mineração destruíam povos inteiros. Camisas contaminadas com vírus da gripe, dinamite jogada de helicóptero, valia tudo para matar índios. Um Vietnã aqui dentro e que não víamos. Cid Moreira, rapaz educado, ao apresentar o Jornal Nacional não falava destas coisas na hora da janta. Os homens de bem estavam descansando.
Voltar para quarenta, cinquenta anos atrás. Não sei se quero voltar a um mundo onde eu era criança e não decidia por mim. Hoje tenho cabelos grisalhos, tenho gastrite, tenho que visitar o urologista com regularidade e tenho dores nas costas. Mas não quero voltar quarenta anos. Qual seria o preço disso?
O preço desse sonho louco seria voltar ao mundo selvagem que era o Brasil daquela época. Tinha seu charme. Mas a Idade Média também tinha. Voltar a um mundo onde militares podiam entrar e acabar com uma festinha de rapazes porque o tenente queria uma moça que estava lá. Onde você não votava para presidente e governador.
Um mundo onde não tinham leis que coibiam abusos domésticos, porque o mal está dentro de casa, e não fora, sabiam? Ter leis de proteção às mulheres, lei de divórcio, criminalizar quem agride o diferente. Nada disso tinha. Respeito as minorias é um pressuposto de um mundo com justiça. Ao mundo de quarenta anos atrás, eu prefiro este nosso bagunçado mundo de hoje.
Qual será o preço que vamos pagar para um doido desses fazer a gente voltar no passado para viver seu sonho reacionário?

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