quarta-feira, 15 de novembro de 2017

CRONICAS DO DUTO - A ENGENHEIRA


(a faixa verde-clara no centro da foto é o duto cruzando os mares de morros)

A engenheira chegou no projeto. Alta, linda, loura, formada na Unicamp e com especialização em segurança do trabalho. Maravilhosa. Uniforme azul impecável, botas novas. Sequer desceu da caminhonete pra cumprimentar: estendia o braço pela janela, e exibia um pálido sorriso.
No primeiro local de visitação, nem quis descer ao local onde estávamos fazendo as sondagens: tínhamos que descer segurando em cordas. Reclamou dos insetos, de uma abelha e de uma joaninha que pousou em seu braço. Quando saímos do local, disse que as curvas da estrada faziam-na enjoar.
No segundo local, até que foi ver o pessoal trabalhando. Aí reparou que ali não existia um banheiro químico. Nosso encarregado, o Siqueira, pernambucano de olhos calmos, respondeu-lhe que ali, naquele tipo de obra, um banheiro químico era um severo impedimento ao trabalho. Nosso deslocamento era constante de um ponto a outro. Levar um banheiro químico para aqueles lugares era um ônus pesado demais para nossos funcionários. Quase como levar fogão de seis bocas num camping.
Então, a engenheira reparou que os funcionários estavam sem o protetor auricular. Novamente, com seu jeito calmo, Siqueira explicou que ali, na mata, não haviam ruídos que pudessem incomodar os funcionários. O bater do martelete de percussão não era continuado nem tinha um som exagerado.
Eu quis mostrar a ela as obras que estava vistoriando. Ela me deixou com o outro fiscal e voltou para a caminhonete. Voltarmos cerca de 40 minutos depois, e a encontramos deitada no banco da caminhonete, ar condicionado, dormindo o sono dos justos.
Disseram-me que ela tinha vindo pra ser chefe da fiscalização do projeto. Não sou nenhum especialista no assunto, mas é mais uma pessoa errada no lugar errado. Depois de quase dez anos sem contratar, as empresas estatais estão num serio dilema. Contratam recém-formados, mas por falta de quadros mais antigos, estes mal entram e já pegam cargos de chefia. O que essa menina vai chefiar?
Mal ela sabia, mas naquele bando de peões que ela viu operando a sonda havia Cícero, que já ganhou dinheiro compondo músicas. Havia o Melancia, contador de causos e anedotas de animar qualquer roda. E havia o Tonho, grande e forte como um urso, suave e simpático como uma criança.
Para além de qualquer projeto estão as pessoas.
As pessoas fazem projetos, constroem dutos, fazem leis, jogam futebol, dirigem grandes corporações, constroem ou destroem países inteiros. Perceber isso é crucial para qualquer empreendimento humano.
Será que a engenheira sabe disso? Pode até saber academicamente, mas tem o saber profundo, aquele que vem com o bater do coração e com o pulsar da existência?
Tomara que ela construa muitas coisas em sua vida profissional. Principalmente, tomara que ela veja, para além das obras prazos planilhas e cronogramas, aquele bando de gente boa e trabalhadora que está ali, fora do ar condicionado, fazendo concretamente o concreto de nossas vidas. Tomara.
(Estas crônicas eu escrevi quando trabalhava num projeto de gasoduto entre Atibaia e Sao José dos Campos, em São Paulo, no final de 2009.)

(publicado em 2009 pela primeira vez aqui)

5 comentários:

  1. Eu já tinha lido esse texto; ele guarda o frescor da primeira vez, e isso é bom. Abraço!

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  2. Fiz um comentário, mas acho que não foi. Já tinha lido este seu texto anteriormente e ele mantém o frescor, e isso é bom. Abraço!

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  3. Edson, o comentário foi sim! Obrigado pelo carinho de sua presença neste humilde blog e desculpe este pobre editor na sua demora em publicar...

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  4. perfeito ! perfeito ! o modo como trata o final da história sem rancor, foi muito bom!

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