quarta-feira, 1 de março de 2017

O FIM DO ANFÍBIO


Hoje de manhã, ao abrir a porta da cozinha vi uma cena macabra: umas perninhas boiando, inanimadas,  num balde de agua com Qboa. Ao chegar mais perto vi que não se tratava de nenhum ser liliputiano, mas sim de uma prosaica rãzinha, que acreditou estar voltando pra casa num pulo.
O corpinho da rã boiava no balde à luz da manhã de uma quarta-feira de cinzas. De imediato, não soube muito o que fazer. Funeral de animais é uma coisa complicada. Em geral, o funeral só é reservado para animais muito próximos, tanto na escala evolutiva quanto na vida. O cachorrinho de estimação das crianças. Meu coelhinho, o Bolinha, morto de causas desconhecidas no quintal de minha infância. O pardalzinho que tentamos salvar, eu e minhas irmãs, quando ele caiu do ninho. Mas, uma rã, e da qual nem tinha conhecimento até ver seu corpitcho de nadadora estirado no nosso balde de limpeza?
Optei por coloca-la no lixo, junto com outros dejetos orgânicos e não compostáveis. Ao pega-la pelas patas, vi que ela já estava enrijecida, os olhos abertos, a barriga inchada. Tive um nojinho, confesso. Mas cumpri minha missão.
 E fiquei pensando sobre nossa relação com os animais, principalmente aqueles animais que achamos não ter relações. Semana passada, apareceu aqui em casa uma cobra. Já apareceram outras duas, mas filhotes. Desta vez, segundo nossa diarista, era uma cobra mesmo. Volta e meia também passa por aqui um gambá, que já fez estragos com umas frutas e com o lixo que deixamos descoberto. Tem também os passarinhos, a fazer algazarra e gritar pelas arvores ao redor.
Optamos, Maria José e eu, por não termos animais de estimação. Dá trabalho para os dois lados. Pra criar tem que se dedicar, e, como viajamos muito, achamos que não compensa. Eu já tive os cachorros e outros bichos que meu pai tinha. Depois, tive os cachorros que meus filhos queriam ter. Agora, posso escolher não ter nada.
Mas, pelo que contei até aqui, acho que eles acabam por nos escolher. Acrescento à lista que dei anteriormente uma coruja enorme que as vezes passa por aqui e um sagui que certa vez gritava na nossa porta. São eles, os animais, que nos escolhem.
Vivemos num mundo ainda selvagem. Que digam os gafanhotos e pulgões e formigas que nos infestam o jardim, que ensejaram o surgimento da indústria de pesticidas. Sem contar, é claro, como os pernilongos e outros aedes, que criaram a indústria dos repelentes.
 E assim vamos, convivendo com eles e os exterminando. O extermínio é feito sem dó. Mato um mosquitinho sem ter dó na consciência. Mato um aedes com um misto de medo e fúria. Exterminamos as baratas com venenos e chineladas com um sorriso sádico nos lábios.
E o que dizer de uma morte involuntária, de um animal “bonitinho”? Que confundiu o balde com Qboa do outro balde ao lado, com agua limpa? Como fica então nossa consciência? Gusano, meu caro amigo Gusano, o verme da garrafa de mescal, me olha com um ar de cético: “vocês humanos ó se preocupam com vocês!”. É verdade, Gusano. Só o que é humano nos interessa. Por isso os sapos e  rãs são bonitinhos e as salamandras são demoníacas.
Devemos, então, nos preocupar com os animais por estarmos preocupados com nos mesmos? O que fazer se vivemos numa sociedade que consome mal e muito, com uma conta que não fecha? Parece que estamos presos dentro da cabine de um trem desgovernado cuja chave foi jogada fora. Gostando ou não gostando do que estamos vendo, estamos todos juntos. Quem quer produzir de qualquer jeito e que quer que haja alguma norma que respeite o meio, estamos todos na mesma civilização. Como as duas faces de uma moeda.
Vai dar cara ou coroa? Ou a moeda da civilização vai pro bueiro sem que se saiba o resultado?
Eu só sei que o fim de um  anfíbio não deveria ser  num balde de Qboa. 

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