sexta-feira, 26 de maio de 2017

JOÃO E GERALDO, GERALDO E JOÃO


Confusão na Cracolândia é de Geraldo ou de João? (fonte)
Era uma vez Geraldo, era uma vez João. João e Geraldo, Geraldo e João. Geraldo era médico, um médico sacristão. Governador dessa gente, ele descia o porrete, ele adorava o bastão.  Já João era empresário, e não desdenhava tostão. Era prefeito gabola, se vestia de gari pra fingir que trabalhava. Pintava muro de cinza, pois gostava da cidade, mas não gostava das cores e nem de diversidade.  
Geraldo vinha de longe, do sopé da Mantiqueira. Era médico, homem simples, religioso com fervor. Acreditava, o coitado, que o homem drogado é um fraco, que é homem sem moral. Pra se curar de verdade, precisa de medicina e precisa de internação. Foi por isso que criou o projeto “Redenção”. Pra cada doente internado, Geraldo é que se redimia, mandava eles pra longe, pra onde a cidade não via.
João não quer saber de nada: ele quer é botar no chão, limpa a rua, dá escracho, e quer varrer pobre embora para a cidade arrumar : “Pobre pra lá do tapume, que não quero nem ver! ”. “Para cá chamo Jaime Lerner, cabra muito inteligente, pra deixar a cidade linda, cheia de luz indireta, boutique e floreira bonita”. Essa cidade granfina que ia brotar dos cortiços, que ia vencer as trevas, seria a “Nova Luz”, na ideia de João.
João e Geraldo, Geraldo e João. Ao chegar na Cracolândia, começou a confusão. Era polícia de um lado, era drogado pro outro, bala pra tudo que é lado. Nada disso era problema, pensava João: “Tudo era viciado, pardo preto cafuzo - isso nem gente é”. Prenderam então muita gente, bateram em muito noiado, botaram num camburão. Uns eram para o presidio, outros para internação, pra limpar a Cracolândia, implantar a Redenção. Era cassetete e bala construindo a Nova Luz.
Atrás vinham os tratores fazer a demolição. Ao derrubar uma casa, ali tinha gente ainda, que susto, que maldição! Esse monturo de gente, misturado com tijolo, gente preso no banheiro, parede caindo abaixo, era o mundo que caia em quem era noiado ou não. Quem tava na Cracolândia era gente sem valia, sem finança ou garantia, sem apoio e sem tostão. O meganha enfim gritou: “Que todos saiam da frente que já vamos demolir! ”. Lá de dentro uma vozinha, sem medo de resistir – “muita calma seu tenente, que aqui o que tem sim é gente, com direito de ir a vir”.
Geraldo e João, João e Geraldo. Pra acabar com a droga, não se acaba com o drogado: tem que dar uma chance pra ele se redimir. Problema não é a droga, problema é a pobreza, a falta de opção. Destruir a Cracolândia é só promover desmantelo, é como enxugar o gelo, só esparrama os noiado. Surgem outras cracolândias pela cidade inteira, tão rápido como o lacrimogêneo das bombas de gás da polícia: é toda a cidade a chorar.
Só com moral não resolve o problema do drogado: ele sabe seu estado, está no fundo do poço, mas com cassetete e alvoroço ninguém pode se curar. Pra eles largar o vício dê emprego e dignidade, que eles fazem sacrifício, e vão a droga largar. A vida na rua é dureza, e ninguém quer morar lá. O problema dessas drogas é problema de pobreza, rico também usa droga, mas tem casa para voltar.
João e Geraldo, Geraldo e João. Pra problema complicado, difícil é solução. Esparramar gente e bala e derrubar os cortiço é a pior solução. Sem encarar de verdade a tal da complexidade, livrar do crack a cidade vocês não irão nunca ver.  Vencer desemprego e pobreza, dar ao pobre seu orgulho, pra se acabar com o vicio é a verdadeira questão. Tratar o povo no cacete e tratar vicio com bala só revela o raciocínio de quem não tem compaixão. De João e de Geraldo, de Geraldo e de João.

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