Confusão na Cracolândia é de Geraldo ou de João? (fonte) |
Era uma vez Geraldo, era uma vez João. João e Geraldo,
Geraldo e João. Geraldo era médico, um médico sacristão. Governador dessa
gente, ele descia o porrete, ele adorava o bastão. Já João era empresário, e não desdenhava
tostão. Era prefeito gabola, se vestia de gari pra fingir que trabalhava.
Pintava muro de cinza, pois gostava da cidade, mas não gostava das cores e nem de
diversidade.
Geraldo vinha de longe, do sopé da Mantiqueira. Era médico,
homem simples, religioso com fervor. Acreditava, o coitado, que o homem drogado
é um fraco, que é homem sem moral. Pra se curar de verdade, precisa de medicina
e precisa de internação. Foi por isso que criou o projeto “Redenção”. Pra cada
doente internado, Geraldo é que se redimia, mandava eles pra longe, pra onde a
cidade não via.
João não quer saber de nada: ele quer é botar no chão, limpa
a rua, dá escracho, e quer varrer pobre embora para a cidade arrumar : “Pobre
pra lá do tapume, que não quero nem ver! ”. “Para cá chamo Jaime Lerner, cabra
muito inteligente, pra deixar a cidade linda, cheia de luz indireta, boutique e
floreira bonita”. Essa cidade granfina que ia brotar dos cortiços, que ia
vencer as trevas, seria a “Nova Luz”, na ideia de João.
João e Geraldo, Geraldo e João. Ao chegar na Cracolândia,
começou a confusão. Era polícia de um lado, era drogado pro outro, bala pra
tudo que é lado. Nada disso era problema, pensava João: “Tudo era viciado,
pardo preto cafuzo - isso nem gente é”. Prenderam então muita gente, bateram em
muito noiado, botaram num camburão. Uns eram para o presidio, outros para
internação, pra limpar a Cracolândia, implantar a Redenção. Era cassetete e
bala construindo a Nova Luz.
Atrás vinham os tratores fazer a demolição. Ao derrubar uma
casa, ali tinha gente ainda, que susto, que maldição! Esse monturo de gente,
misturado com tijolo, gente preso no banheiro, parede caindo abaixo, era o
mundo que caia em quem era noiado ou não. Quem tava na Cracolândia era gente
sem valia, sem finança ou garantia, sem apoio e sem tostão. O meganha enfim
gritou: “Que todos saiam da frente que já vamos demolir! ”. Lá de dentro uma
vozinha, sem medo de resistir – “muita calma seu tenente, que aqui o que tem
sim é gente, com direito de ir a vir”.
Geraldo e João, João e Geraldo. Pra acabar com a droga, não
se acaba com o drogado: tem que dar uma chance pra ele se redimir. Problema não
é a droga, problema é a pobreza, a falta de opção. Destruir a Cracolândia é só
promover desmantelo, é como enxugar o gelo, só esparrama os noiado. Surgem
outras cracolândias pela cidade inteira, tão rápido como o lacrimogêneo das
bombas de gás da polícia: é toda a cidade a chorar.
Só com moral não resolve o problema do drogado: ele sabe seu
estado, está no fundo do poço, mas com cassetete e alvoroço ninguém pode se
curar. Pra eles largar o vício dê emprego e dignidade, que eles fazem
sacrifício, e vão a droga largar. A vida na rua é dureza, e ninguém quer morar
lá. O problema dessas drogas é problema de pobreza, rico também usa droga, mas
tem casa para voltar.
João e Geraldo, Geraldo e João. Pra problema complicado, difícil
é solução. Esparramar gente e bala e derrubar os cortiço é a pior solução. Sem
encarar de verdade a tal da complexidade, livrar do crack a cidade vocês não
irão nunca ver. Vencer desemprego e pobreza,
dar ao pobre seu orgulho, pra se acabar com o vicio é a verdadeira questão. Tratar
o povo no cacete e tratar vicio com bala só revela o raciocínio de quem não tem
compaixão. De João e de Geraldo, de Geraldo e de João.
Muito bom o texto, Jefferson.
ResponderExcluirObrigado António Carlos!
ExcluirNossa, isso é muito bom, parece cordel. Abraço, Jeff!
ResponderExcluirCrônica preciosa. Análise precisa.
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