em memoria de Salvador Picanço (1934-2008)
Ontem aqui em casa o céu amanheceu azul, azul. Parecia céu
de inverno, mas não era. Lá pelas duas da tarde o calor estava forte, e no meio
da tarde chegamos fácil a 32°C na sombra. Às 6 da tarde, nuvens se acumularam. O
céu pretejou e começou a ventar, ventar mais forte, e dali a pouco começou a
chover. Choveu uma chuva fraca, mas firme, até a hora de ir deitar.
Quando chove assim e a gente coloca a cabeça no travesseiro,
é hora de pensar. Pensar o quê meu Deus? com tanta coisa na vida que a gente
tem que pensar! É aula, é aluno, é
colega, é o programa de pós, o currículo Lattes. Pode ser também o de dentro: a
casa, a próxima reforma da casa, a vida dos filhos, dos pais, dos irmãos tios e
cunhados. Pode ser também a vida dos amigos, dos filhos dos amigos. Pode ser
aqui, pode ser o mundo, pode ser tanta coisa...
Ontem, pensei no meu pai, que teria completado 81 anos. Pensei
na sua vida, na sua força, no que significou pra mim. Eu, menino, morria
de medo de levar bronca: era bronca por tanta coisa, que eu nem sabia de onde
vinha. Meu pai era um ser enorme, capaz de me levantar do chão, capaz de me dar
umas palmadas meio envergonhadas, capaz de me dizer coisas ou apontar meus
erros com voz de trovão.
Depois, mais da minha altura, ele começou a ter fraquezas,
começou a ser humano. Eu agora via os seus erros, suas falhas, seus lapsos. O pai,
que antes era um Zeus olímpico, passou a ser humano, demasiado humano. Mas era
meu pai, e eu sempre respeitei muito suas opiniões e atitudes, embora nem
sempre concordasse com elas. Achei por um bom tempo que iria ser diferente, que
iria fazer diferente. Porque, afinal, eu não era meu Pai.
Algumas falhas de meu Pai eu deplorei, mas tentei acha-las também
em mim. Para meu grande espanto, elas também estavam lá, grudadas feito o limo da
calçada de sua casa. Tenebrosa como os cantos escuros dos quintais de minha infância,
cheios de lesmas, caramujos e bichos nojentos. Minha primeira sensação foi de
espanto e terror: eu era igual a ele.
Quando sai de sua casa e comecei a minha vida é que eu vi o
quanto era dura a vida de meu Pai. Comecei a ver que eu não conseguia ser
diferente dele e, em muitos casos, eu conseguia mesmo ser pior. Frequentemente me
comparava com ele, e me sentia sempre menor, mais fraco, mais tolo, mais “mocorongo”.
O que eu poderia fazer pra merecer algo dele?
Tentei, os céus bem sabem que tentei. Adorava ligar pra ele
no seu aniversário, quando estava viajando longe. Quando estava por perto, eu
ia lá, conversar na varanda da sua casa um monte de coisa sem nexo, futebol,
politica, historia. Sobre Antonina, suas belezas e mazelas, conversávamos sempre. Do muito que conversamos, infelizmente acho que conversamos
pouco o que sentíamos um pelo outro. Éramos os dois “homens demais” pra aquela
conversa chororô.
O fato é que amei profundamente aquele velho ranzinza e
turrão. Como não poderia amar aquele homem? Acho que não sou ranzinza e turrão,
mas carrego zelosamente outros defeitos dele comigo. Tenho muito orgulho de ter
feito parte de sua vida, de ter tomado café com pão d´água na cozinha, de ouvir
seus planos, suas ideias. Homem pra ter planos e ideias, meu pai. Nos últimos anos,
lembro de ter, junto com minha mãe e minhas irmãs, brigado com ele pra ele tomar
remédio, brigar pra ele seguir repouso, e essas coisas que se diz quando se ama
um doente querido, mas chato.
Hoje, amanheceu outro dia. A chuva parou, o céu amanheceu
novamente azul, mas o sol não deixa dúvidas de que será outro dia quente. Os
sabiás aqui do quintal estão já trabalhando em seus ninhos. Lembro com carinho de seu Dodô, de sua vida e
de seu exemplo e sigo adiante, vivendo minha vida, mas carregando fortemente em
mim as lembranças dele.
Belíssimo texto sobre o que carregamos dos pais. Somente com o tempo, temos o distanciamento suficiente para perceber o quanto os amamos, o quanto trazemos deles em nossa personalidade, na formação do nosso caráter e até das suas idiossincrasias. Ou melhor, principalmente das suas idiossincrasias. Abraço!
ResponderExcluircomo dizia um grande amigo meu, é um processo...temos que percorre-lo. Obrigado pelo carinho, Edson!!
ResponderExcluirMaravilhoso texto que traduz o sentimento de todos nós. Crescemos numa época onde as relações de afeto sempre ficaram distanciadas, herdadas pelo modo de criação que se achava correta. Estranhamente temos um certo orgulho dessa criação.
ResponderExcluirAbraço!
Obrigado, xará!! Você tocou num ponto sensível: cada época cria do jeito que acha mais correto, eu imagino. O orgulho acho que vem mais do "I am what I am" do que de saudades da criação que tivemos. Particularmente, embora tenha também seus erros - e muitos! - eu prefiro como a gente cria hoje, dando mais espaço pras relações de afeto. Valeu mais uma vez pelo seu carinho!!
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