quarta-feira, 7 de março de 2012

A FUNDAÇÃO DA CIDADE



(nos primeiros tempos do meu blog, publiquei uma historia mais longa, com o subtitulo "sinceridades inveridicas sobre minha aldeia", da qual reproduzo um trecho aqui; este trecho fala sobre os tipos de rua de Antonina, em especial Maneco Cego, verdadeiro terror de minha infância)

Nas ruas é que nos reuníamos para conversar: emitíamos juízos em longos monólogos, incompreensíveis uns para os outros. Nossa fala era primitiva e pouco sóbria - gritávamos, falávamos coisas sem nexo, nos injuriávamos mutuamente. A exageração e o teatral eram constantes, possuindo mesmo até graça e melodia, se graça e melodia então houvessem. Ríamos muito, de praticamente tudo, sem mesmo esperar motivos. Volta e meia, porém, cessava o riso para seguir-se o pranto, quando pranteávamos um passado que ainda não fora inventado. Das janelas das casas, olhos e ouvidos invisíveis nos observavam e escutavam, rindo ou chorando de nossas frouxas histórias.
 Alguns de nós porém, deixavam-se ficar mais tempo nas ruas, agarrando suas histórias com uma tenacidade quase comovente. Estes iam falando, falando e falando, e suas frases iam ficando cada vez menos coerentes. Quando isso acontecia, mais e mais faziam sentido. Dali a pouco tempo, sinais de uma loucura doce eram visíveis, e estes profetas ficavam então vagando pelas ruas e resmungando suas inúteis profecias. Tamanha era sua força que uma estranha lucidez os envolvia, e mesmo as pessoas que riam ou choravam dos ditos do louco o temiam como a uma praga.
Entre eles havia Maneco Cego, o profeta trôpego a cantar com voz de Vicente Celestino velhas canções ainda não compostas. Maneco Cego (Ou Maneco Pato, nunca soubemos ao certo) era um profeta itinerante, sazonal. Passava grandes temporadas entre nós, e, depois, desaparecia outros tempos. Semi-cego, dizia ser nosso rouxinol, narrando um fictício programa de rádio pelas ruas, em que era o locutor, o narrador e o cantor. Bem humorado, seu programa poderia durar o dia todo, caminhando alegre pelas ruas todas da cidade. Quando Maneco estava de mau humor, aprendíamos novos significados para palavrões até então singelos de tão cabeludos.
Tinha as pernas duras e andava com dificuldade, como um grande boneco, um grande pássaro desastrado. Para atravessar a rua, por exemplo, Maneco era metódico. Chegava-se até à beira da calçada e esticava a perna, em movimentos bem duros. Freqüentemente se desequilibrava, e desandava numa pequena corrida, como se praticasse marcha atlética, indo se aprumar lá pelo meio da rua, desengonçadamente. Quando não era atropelado ou xingado por algum motorista, dali Maneco prosseguia sua marcha trôpega no rumo da calçada oposta. Esticava a perna, subia o meio-fio e lá ia se aprumar novamente contra a parede das casas.
De sua cegueira tudo se dizia, e havia mesmo quem duvidasse ou quem o tivesse visto lendo jornal deitado lá no Mercado, ou então olhando atentamente para uma cédula nova que tivesse acabado de ganhar. Tentávamos assustá-lo com berros e gritos à queima-roupa, provocando cenas patéticas. Os moleques saiam rapidamente da fatal distância de seu abraço, com alguns croques resvalando pela cabeça.  Maneco arrumava seu paletó em frangalhos, sacudia o corpanzil desajeitado e, desfiando seus habituais xingamentos, seguia andando em direção à porta do Cinema. Pelo meio da manhã, os urubus também já haviam saído do mercado e voavam em círculos sobre a cidade, cada vez mais alto, aproveitando a corrente de ar ascendente. Depois de comer alguma coisa, qualquer coisa, Maneco dormia. Encostava em qualquer parede de casa, muro, ou debaixo de um marquise e dormia, sossegado. A cidade com seus olhos e janelas atentos viam tudo aquilo e balançavam a cabeça, tristemente. O sol já ia baixo, meio da tarde, Maneco seguia novamente em direção ao Mercado fazer qualquer coisa, ou mesmo nada. Feliz, começava a cantar alto, e era sempre tão bonito e tão triste, que nos esquecíamos de tudo, não tínhamos lar nem amigos, tudo havia terminado. As músicas de Maneco tinham sempre este ar trágico, de abandono e solidão, tão ao nosso jeito de estar no mundo, acariciando nosso vazio de alma. Nestas horas, nos perguntávamos quem havia sido aquele homem de triste figura, parecendo um urubu descarnado. Um pobre coitado? Um milionário que largou tudo e foi viver ao relento por causa de um amor fracassado? Mas tudo isso era de um romantismo tão pobre e rasteiro que não durava sequer uma sessão inteira de O Ébrio. Os urubus iriam embora para seus ninhos, lá no morro, e a noite encontraria Maneco deitado em algum canto, o paletó suarento, olhando ao redor com seus olhos pequenos, o nariz adunco de ave benévola.
Maneco sumia por uns tempos, talvez estivesse longe, por onde andaria então? Pegava o trem e sumia. Onde ia durante estes sumiços? Voltava invariavelmente alegre, murmurando o fim dos tempos. Sua voz potente tomava tons de oráculo, e então ríamos, mesmo sabendo de seu poder. Tentávamos então rir mais alto que sua voz, para que se calasse. Mas era um cabo de guerra desigual, e seu dedo em riste nos prometia infortúnios e desgraças. Alguns perguntavam: por que tal profeta preferia viver ali, sempre a beira do apocalipse, sem qualquer conforto ou absolvição? Nós não tínhamos saídas, estávamos presos dentro de nós mesmos, de nossa angústia, de nosso vazio. Mas Maneco não se importava com isso. Não se importava com nada. E prosseguia entre nós, inabalável.
Não obstante, tínhamos a certeza de estar no melhor dos mundos. Enganávamos a nós mesmos de maneira cruel e  impiedosa, e ríamos de nossas próprias frouxas histórias. Pior, acreditávamos nelas. A beira do apocalipse, sonhávamos com o mundo de nossos avós. Viriam navios, viriam indústrias, viriam turistas. Grandes festas, grandes bailes, Corsos e desfiles, toda uma época de ouro, toda uma época mágica estava voltando, a qualquer desavisado momento. Maneco, ao contrário, nos falava de estranhas tragédias, de pragas e anjos com trombetas, descendo a serra pela estrada velha, gritando e apitando como verdadeiros demônios. Era os nossos demônios, que finalmente tinham nos encontrado, ele explicava. Uma maré de sete anos invadiria as casas, dizia, submergindo a cidade no lodo. Depois de anunciar nosso fim, Maneco esquecia tudo e voltava a transmitir sua rádio, a ser importunado pelos meninos e amaldiçoado pelas donas de casa. Se sumisse, dali a algum tempo apareceria novamente, com uma regularidade que nos convencia de que existia o tempo, a sucessão normal das coisas. Mas, mais uma vez, Maneco estava nos enganando com suas idas e vindas. Nos dias de chuva, ficava sob qualquer marquise, quieto, rodeado por seus haveres, parecendo uma grande ave em seu ninho.

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