Dedico esta postagem ao povo de Antonina e aos moradores do bairro Floresta, em Morretes, juntos na mesma tragédia
Foi hoje o dia, há dez anos atras. 11 de março de 2011. Um
dos piores desastres que o litoral do Paraná enfrentou. Um dos piores desastres
que os antoninenses enfrentaram.
Um desastre não começa exatamente durante a chuva torrencial.
Muitas vezes ele começa antes. Começa da forma como a sociedade se divide, e na
divisão desigual da riqueza, que empurra os menos favorecidos para as áreas mais
sujeitas a desastres. Continua nas casas, construídas nas regiões mais vulneráveis
e da maneira mais precária.
Durante o momento “quente” do desastre existe muito esforço
de ajudar. Existe aquela saudável animação de Bombeiros, Defesa Civil,
prefeitura, muita gente pelas ruas. Mas depois, quando o assunto esfria, quando
o jornalista deixa de pautar a notícia, quando o dia a dia se impõe, o desastre
continua por outros meios.
Em março de 2011, em Antonina e Morretes, no dia anterior
tinha chovido muito. Naquela sexta feira, 11 de março de 2011, o mundo caiu
sobre o litoral do paraná. A quantidade de chuva, que nos poucos pluviômetros que
tínhamos então na região, pontam marcas de até 260 mm por metro quadrado por
dia. Para que se tenha uma ideia, um furacão tem chuvas de até 600 mm/dia.
A quantidade de chuvas era o suficiente para gerar uma catástrofe.
E catástrofe foi o que aconteceu em vários pontos do litoral paranaense naquele
dia.
A defesa civil antoninense fez o dever de casa, e chamou a
sede em Curitiba. O pessoal desceu, juntamente com alguns geólogos da MINEROPAR,
entre eles Rogerio Felipe. Ao chegar no sopé do morro da Laranjeira, Rogerio ficou
muito assustado com o que viu. “Falei para Defesa Civil tirar todo mundo”,
me contou, emocionado, tempo depois. A percepção de Rogério foi a diferença
entre a vida e a morte das pessoas que ali moravam.
A única vítima, infelizmente, foi seu Pedrinho, que tinha
ficado de tomar banho antes de sair de sua casa. Não deu tempo. Quando os
bombeiros resgataram seu corpo, o velho porteiro do Cine Opera na minha infância,
agora um senhor de 80 anos, já estava morto. À noite, nos fundos do cemitério são
Manoel, uma torrente tiraria a vida de uma jovem mãe que havia voltado à casa
para pegar a mamadeira de seu filho. Estas foram as duas vítimas capelistas da
grande tragédia.
Em Morretes, o rio Nhundiaquara havia subido, inundando a
cidade mais uma vez. Havia escorregamento por todos os lados da cidade, mas no
distrito de Floresta, na Serra da Prata, na divisa com Paranaguá, entretanto, a
situação foi bem mais dramática. Uma série de torrentes de detritos varreu os
morros da Serra da Prata, arrasando a comunidade de Floresta. Segundo seu
Arlindo Capeta, morador e líder comunitário do bairro, com quem conversei
depois, “teve um grande estrondo e a terra começou a tremer”. Veio água,
veio pedra, veio arvores enormes descendo com a correnteza, contou ele.
Seu Eurides Lucheta, que tinha uma casinha perto do morro do
Gigante, mais adiante na serra, ficou isolado por três dias, só se alimentando
de bananas e tomando agua suja. No domingo, foi resgatado por um helicóptero da Polícia Militar. É
dele a descrição mais precisa do tipo de torrente que descia a serra. Ele
contou que uma cachoeirinha que tinha nos fundos de sua casa subitamente secou.
Provavelmente formou-se um grande barramento natural de rochas e tronco serra
acima. Quando o barramento se desfez, houve um grande estrondo, e ele correu
para se abrigar nas pedras. A torrente veio feroz, e levou sua casinha e seu
cachorro, que havia ficado para trás. “Parecia uma onda grande do mar”,
nos contou ele.
Quando cheguei à Antonina no dia 14 de março, numa missão do
CENACID, o Centro de Apoio Científico em Desastres da UFPR, chefiado por nosso
amigo e companheiro Renato Lima, a situação estava confusa na Deitada-a-beira-do-mar.
Ainda muita lama pela cidade, o grande escorregamento da avenida Nenê Chaminé barrava
a rua. Na Laranjeira, era só desolação: casas que desapareceram, casas
danificadas, casas ainda intactas, o cheiro de terro e morte.
Diziam que a grande pedra do Morro da Pedra iria cair. Subimos
lá e vimos que estava firme como nunca. Diziam que havia fendas no Morro do
Joubert, ameaçando as casas da Graciosa de Cima. Sim, havia uma fenda ocasionada
pelas chuvas, e ela estava em atividade, apresentando algum risco. Monitoramos sua
movimentação por três dias, até que cessou de se movimentar. Enquanto isso, os
bombeiros e a Defesa Civil pediram que as pessoas deixassem suas casas na
Graciosa de cima e de baixo. A medida era exagerada, mas ninguém tinha certeza
do que estava por vir. Era uma precaução exagerada, mas que evitaria perdas de
vidas, e ainda me parece bastante razoável.
Foram três dias intensos, onde eu, minha colega de CENACID,
a geóloga Fabiane Acordes, e o nosso líder de missão, Renato Lima percorremos vários
morros, andamos vendo várias situações. Foram também várias reuniões, com o
pessoal da Defesa Civil, os técnicos, e os voluntários. Dentre estes, conheci vários
conterrâneos que a ocasião juntou, desde funcionários da prefeitura, colegas,
vizinhos e curiosos, que sempre davam um tempero especial às nossas correrias.
Tive também oportunidade de voltar diversas vezes para
acompanhar o pós-desastre. Entre 2011 e 2014 fiz diversos campos com meus
alunos nos morros de Antonina e Serra da Prata, onde fizemos diversos trabalhos
e muitos ensaios. Boa parte destes trabalhos estão publicados em diversos eventos,
tanto no Brasil como no exterior.
Poucas vezes, no entanto, tivemos a chance de ter uma
devolutiva para a população. Por diversos motivos, acabamos por não conversar
sobre as pessoas sobre o que aconteceu. Há poucos anos, em 2017, por ideia de
meu aluno Gabriel Facuri, organizamos uma reunião com os moradores do bairro
Floresta. Foi muito interessante a troca. Aprendemos muito também. Podemos voltar
a falar só disso em outro momento.
Em geral, as vítimas destes grandes desastres passam por muitos
problemas quando o momento mais agudo do desastre termina. Sofrem pressões de
diversas formas, muitas vezes são impedidos de voltar as áreas que ocupavam. Muitos
apresentam traumas psicológicos difíceis de sanar. Crianças e adolescentes,
quando não tem assistência adequada, podem passar para o crime ou o desajuste
social.
Passaram-se dez anos. Mas existem ainda muitas pontas soltas
do desastre. Hoje, um medo de chuva toma conta das pessoas que se lembram dos
dias trágicos. Algumas, tem síndrome do pânico. Outras, estão desalojadas. Antonina
ainda não incorporou o bairro da Laranjeira, embora tenha até projetos de transformar
a área num parque. O próprio Morro da Pedra perdeu todo o chamativo que tinha
como um cartão postal da cidade. As pessoas ainda não sabem direito o que aconteceu.
Os estudiosos não deram uma devolutiva adequada de seus estudos à comunidade.
O que fazer num próximo desastre? Estamos preparados? Como podemos fazer para
enfrentar melhor um desastre semelhante?
Segundo um proverbio japonês, povo acostumando com todo tipo
de desastre, os desastres acontecem quando nos esquecemos deles. Fica a dica.
(também agradeço a Renato Lima, Fabiane Acordes, Carlos Augusto Canduca Machado e José Paulo Vieira Azim, sem a ajuda dos quais eu não teria conseguido estar e trabalhar na minha cidade quando esta precisou de minha modesta ajuda)
Não podemos nos acostumar!
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