sexta-feira, 16 de junho de 2017

OS LANCEIROS NEGROS E A AGONIA DA DEMOCRACIA


O Deputado estadual Jefferson Fernandes (PT-RS), antes de ser preso pela Brigada Militar na desocupação violenta da Ocupação Lanceiros Negros, em Porto Alegre, nesta ultima quarta- feira.

Um dos sinais mais claros que as coisas estão mudando é a desfaçatez da violência. Como uma folha que amarelece de fora para dentro, a violência vem se instalando lentamente em nosso cotidiano. Como recentemente disse um artigo de Eliane Brum (ver aqui), é nas periferias do sistema que as pessoas primeiro se sentem à vontade para usar da violência sem nenhum receio ou pudor.
Uma evidência do final do mês de maio é o recente Massacre no Pará, quando nove homens e uma mulher foram mortos pela Polícia Militar em Pau D´Arco, a 867 km de Belém, quando resistiam a uma reintegração de posse (ver aqui). Os policiais chegaram a remover os corpos para evitar a perícia (ver aqui). Um mês antes, em abril, fazendeiros balearam índios da etnia Gamela do povoado de Bahias, em Viana (MA), tendo decepado a mão de um dos indígenas, Aldelir Ribeiro, de 37 anos (ver aqui). Essas chacinas covardes, uma delas perpetradas por supostos “Agentes da Lei”, entrou e saiu no noticiário como se se tratasse de um longínquo confronto no Afeganistão ou na Síria.
Esta semana, outro absurdo, desta vez em área urbana. A ocupação Lanceiros Negros, no centro de Porto Alegre, sofreu na noite desta ultima quarta-feira uma desocupação extremamente violenta, com uma ação excessiva da Brigada Militar. (Para quem não conhece o Rio Grande do Sul, Brigada Militar é o nome da PM no estado; o nome "Brigada" bem lembra a sua origem, como as demais PMs, como forças militares auxiliares ao Exército e à serviço das oligarquias estaduais.)
Na noite fria e chuvosa em Porto Alegre, véspera de feriado de Corpus Christi, usando bombas de efeito imoral, a Brigada Militar que realizava a desocupação chegou a prender o deputado estadual Jefferson Fernandes (PT-RS), presidente da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa Gaúcha. Três horas depois, quando os brigadianos se deram conta da bobagem que fizeram, o deputado foi liberado. As mulheres da ocupação presas junto com ele, no entanto, continuaram detidas.
Enquanto isso, a Brigada atirava pelas janelas sofás, objetos de cozinha e até travesseiros e roupas de cama, conforme denunciou a reportagem ao vivo dos Jornalistas Livres. Retiradas a força do prédio, as famílias desalojadas estão precariamente alojadas num ginásio de Porto Alegre, sem condições de higiene ou de cozinhar.
Aliás, boa parte das 70 famílias que desde 2015 ocupavam o prédio histórico abandonado no centro de Porto Alegre vieram de uma outra zona de risco, a saber, de risco de enchente. Na Ocupação Lanceiros Negros, os moradores fizeram um experimento de moradia baseado na auto-gestão. No interior do prédio, que pertencia ao Estado e estava desocupado há mais de 10 anos, as famílias limparam tudo e montaram uma biblioteca, estabeleceram regras de convivência, se integraram com dignidade e respeito à vida do bairro.
A reintegração de posse ocorreu dentro da legalidade, com estamos vendo no Brasil desde o golpe de 2016. A Juiza Aline de Santos Guaranha ordenou “o cumprimento da ordem aos feriados e finais de semana e fora do horário de expediente, se necessário, evitando o máximo possível o transtorno ao trânsito de veículos e funcionamento habitual da cidade”. Dane-se o transtorno causado aos ocupantes. O importante é não perturbar a paz dos “cidadãos de bem”.
Os “cidadãos de bem”, aliás, não se furtaram a inundar de ódio as páginas da internet, clamando pelo direito de propriedade e pregando punições aos “vagabundos” e “parasitas”. Como se o direito de propriedade não fosse extensivo aos ocupantes, que precisam atuar nas franjas da lei para ter um local para morar. Para os  "cidadãos de bem" este direito é garantido sem restrições pelo Estado. No entanto, a propriedade privada pura e simples não é uma garantia da “Constituição Cidadã” que os golpistas querem a todo custo rasgar. Ela está justamente subordinada à sua função social. Não se tem o direito ilimitado de propriedade, portanto, se ela não atende ao conjunto da sociedade (ver mais aqui). Num estado que não cumpre seu papel de facilitar acesso a moradia, a Ocupação Lanceiros Negros, que fez da invasão sua arma de luta está coberta de razão.
Como contraponto ao Sistema que os obriga a transitar nas franjas, o nome "Lanceiros Negros" é excelente. Os Lanceiros Negros foram um grupo de combate da Revolução Farroupilha (ver mais aqui). Formado por ex-escravos e negros libertos, foi uma das forças de combate mais terríveis do Exército Farrapo em suas batalhas contra o Exército Imperial. O próprio Garibaldi, em suas Memórias, cita que a bravura dos Lanceiros Negros não poucas vezes o inspirou em combate. Traídos pelos próprios comandantes Farrapos, os Lanceiros Negros foram entregues desarmados às forças Imperiais, que os massacraram ao final de 1844, no denominado Massacre de Porongos. Os Lanceiros em sua maioria foram mortos e seus sobreviventes foram reescravizados. Afinal, era extremamente incômodo para a elite branca um batalhão de soldados negros e livres num país que condenava os negros à escravidão. O fim dos Lanceiros Negros foi o último obstáculo à pacificação da Província, pondo fim à Revolução Farroupilha.
Chegamos aos Lanceiros Negros modernos. Sem garantia de função social da propriedade, confinados a zonas de riscos de enchentes, são brutalmente retirados numa noite fria e chuvosa pela ação desproporcional da Brigada Militar. Homens, mulheres e crianças, como os lanceiros traídos em Porongos, se retiram, numa fria madrugada de junho, para um abrigo provisório na periferia de Porto Alegre.
Não houve sequer respeito pelo deputado que, com a força de seu mandato, tentava evitar toda a confusão. Atacado com gás de pimenta, chutado, espancado e finalmente preso pela Brigada, como numa afronta aos seus eleitores. Diga-se de passagem que um dos momentos mais civilizados da Republica Romana foi quando se admitiu que a pessoa do Tribuno da Plebe, que defendia os interesses da massa do cidadão, era por isso mesmo inviolável. A Brigada Militar, em pleno século XXI rasga a lei que jura defender atacando (este sim!) um digno representante do povo para defender um vago direito à propriedade.
O Governador, esse pobre coitado, diz que está tudo certo com a Brigada, diz que eles cumpriram o seu papel. Mas, quem é responsável pela extrema violência, se os brigadianos não são mais do que um instrumento do Estado, se não ele? Este é o papel de um governador, afinal eleito pelo povo? Uma repórter governista veste a carapuça e escreve que “cumprir ordem de despejo em uma noite de inverno e algemar um deputado estadual foram equívocos” (ver aqui).  O Governo se defende e diz que a oposição fez isso para “angariar dividendos políticos e midiáticos”. Será que foi tudo combinado, como numa sessão sadomasô? Um bate e o outro apanha, é isso?
 A folha verde e viçosa da Democracia vai se amarelando. Pelas bordas, lentamente. Ora é um mendigo, um noiado de crack. Depois, são os sem-terra, os índios. Não nos importamos com isso, moram longe, são todos vagabundos e parasitas. A folha verde vai se amarelando, até cair. Na hora em que baterem na nossa porta para nos levarem, como fizeram com tantos outros nas ditaduras do passado recente, não haverá mais por quem chorar.

(Esta postagem é dedicada à minha amiga e companheira Maria José, que me apresentou ao mundo ao sul do rio Mampituba, que tanto gosto)

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