sábado, 31 de março de 2012



Fiquei atordoado quando vi, de café e chinelos, que Millôr Fernandes tinha morrido. Não deveria me espantar. Ele havia sofrido um derrame forte no inicio do ano passado e estava muito doente desde então.  Segundo o próprio, só se morre uma vez, e é para sempre.
No entanto, comecei a me lembrar dele e de suas frases e me lembrei de mim mesmo. Lembrei de quando ia à livraria do Mauricio comprar a Veja para meu pai. A Veja aquele tempo não era a “Óia” de hoje, revista abjeta e rasa a abastecer de preconceitos certa classe média. Era uma revista séria que publicava coisas que ofendiam os generais então no poder. Houve, por exemplo, a edição que falava da cassação do governador Leon Peres, que foi aprendida nas bancas, mas que meu pai tinha um exemplar, que toda a semana reservava a sua Veja na Livraria do Mauricio. Eu me lembro de levar escondido o exemplar da revista para amigos de meu pai lerem – aqueles eram tempos difíceis, dos quais ninguém a não ser uns poucos tarados tem saudade.
(A livraria do Mauricio Madureira ficava onde hoje fica o Caravelas. Pela minha cabeça a livraria durou muito tempo, mas acho que o Caravelas é um empreendimento muito mais duradouro – pena que não venda também gibis, livros e revistas, como algumas livrarias que eu conheço, que tem cerveja, whisky e cachaça.)
Pois foi lendo a Veja que conheci Millôr. Confesso que não entendia nada do que estava escrito, mas como a coruja da famosa piada, eu prestava muita atenção. Algumas piadas entendi tempos depois, e dava risada pra mim mesmo, escondido – “então era isso!”. A importância de Millôr é tão grande que descubro que meu computador tem seu nome todo arrevesado computado no seu dicionário.
Tempos depois, descobri na estante de meu tio Edilson, jornalista da Folha de Londrina, um exemplar do “Livro vermelho dos pensamentos do camarada Millôr”. O exemplar, obviamente vermelho, tinha a foto do Millôr imitando outro famoso escritor de livros cromáticos, o líder chinês Mao-tsé-tung. Muito hilário. E as leis de Murphy, que ele foi um dos primeiros a traduzir – e acrescentar outras – no que ele chamou de “antileis risofísicas”? Sem contar as fabulas fabulosas, os haicais, etc etc etc.
Com ele não tinha essa historia de politicamente correto ou politicamente incorreto – ou era piada ou não era - sem perder a ternura jamais, claro está. De direita ou de esquerda, de centro ou de lado, humor é humor. Sem precisar partir pro escracho, pras bundas de fora, pras vísceras à mostra. Não levar a vida a sério, não levar as coisas tão a sério, não se levar a sério. De resto, um grande humanista, um sujeito que viveu sua vida com leveza e independência. Algumas lições que tiro do que li da obra milloriana.
 Segundo alguns detratores, ele levava a sério algumas críticas sim. Não tinha o mínimo sentido de modéstia. Segundo li Millôr dizer dele mesmo certa vez: “eu não sou um grande humorista. Sou apenas o sujeito mais engraçado da família mais engraçada da cidade mais engraçada do país mais engraçado do mundo”. Precisava, além de gênio, ser modesto?
Hoje a noite vou assistir na TV Cultura uma reprise do Roda Viva com uma entrevista com Millôr Fernandes. Tirarei o telefone do gancho e desligarei o celular.

sexta-feira, 23 de março de 2012

UM CÉU NO CHÃO

Como diria o samba, vista assim do alto, até parece um céu no chão...tive que fazer um rápido bate-e-volta à  Curitiba e, pra minha alegria, o vôo passou bem em cima da Deitada-a-beira-do-mar. Ela não é linda?

domingo, 18 de março de 2012

ANTONINA ANTIGA - VI



Acho esta foto belíssima. O fotografo está postado na rua XV de novembro, em frente à atual rodoviária. Dois prédios se destacam. Um, à esquerda, é o da atual loja Pica-pau. Aparece com um grande sobrado, com um mastro no centro. Seria uma nessa época uma repartição pública?   Ou a sede de alguma empresa? O outro prédio, à direita, é o sonho de dez entre dez políticos da nossa Deitada-a-beira-do-mar nos últimos cento e poucos anos: a Prefeitura. Ai sim vemos um mastro embandeirado, mostrando claramente seu perfil de edifício público.
Pela posição da foto, o fotografo está postado no meio da rua, o que lhe dá uma excelente perspectiva, que converge retilínea para o centro. No centro está um grupo de pessoas vestidas de preto, cerca de quinze pessoas. Estão de costas para a foto, se afastando de nossa visão. Somente duas, uma mulher e uma criança, estão de roupas brancas. Será uma procissão? Pelas roupas, o mais provável é que se trate de um enterro.
Quem estará sendo enterrado? Com certeza é alguém de posses, pelo traje das pessoas. No entanto, o pequeno número de pessoas no féretro indica ser uma pessoa simples. Não se trata de um político ou de um grande comerciante, ou poderia haver mais algum sinal de seu poderio ou riqueza. No entanto, estamos de longe, e as pessoas que estão participando do enterro estão de costas, não se pode ter muita certeza.
A rua está relativamente vazia. Seria um domingo? Um feriado? Em outras fotos, vemos a rua XV toda buliçosa, cheia de veículos e de gente, indo e vindo, muito mais até que os dias presentes. É, pode se tratar de um dia santo, onde tudo corre devagar. Em primeiro plano, à direita, está estacionado um Ford bigode, com uma grande placa onde se vê um numero – 256. Que distância das placas de três letras e quatro algarismos! O Ford bigode nos indica se tratar de uma foto antiga, dos anos 20 do século XX. Ou seja, ainda não estamos na Antonina rica dos anos 30.
Pela altura do sol, projetando escassa sombra na calçada da esquerda, a foto foi tirada no final da manhã. Essa luminosidade de quase meio dia toda reverbera pela imagem e a enche de luz, contrastando com as pessoas de preto no meio da rua, que parecem caminhar de cabeça baixa, compungidas, conduzindo seu morto.
 Algumas pessoas, no entanto, não participam da cerimônia fúnebre. Alguns estão pela calçada. Um marinheiro de branco está parado na esquina, próximo ao atual banco do Brasil. Perto dele, algumas crianças, vestidas de cores claras. Mais perto, um homem de boné, camisa branca e uma calça com a barra alta, em meia canela, mostrando a meia e os sapatos. A seu lado, um tipo de paletó largo e cartola alta faz pose, colocando a perna no degrau da casa, com as mãos dobradas no joelho. Está nitidamente mirando o fotografo. Não se pode ver seu rosto, mas sua postura, um pouco irônica, faz um contraponto curioso à dor que exala das pessoas de preto no centro da foto. Quem será este homem?
A procissão segue com seu morto para dentro da foto e da história. Talvez jamais saberemos. As perguntas ficam: quem eram estas pessoas? O que faziam ali? O que pensavam e sentiam naquele momento? Era mesmo ironia a pose de homem de paletó e cartola? Talvez existam inúmeras respostas para estas perguntas. Ou, o que é mais provável, nenhuma. A Antonina de outrora está ali, uma mera imagem no papel, sem qualquer explicação adicional.
A única certeza é a indesejada das gentes, como diria Manoel Bandeira, tuberculoso, que passou a maior parte da vida driblando a iniludível. Lembro do poema do homem no café, que tirou o chapéu numa homenagem silenciosa ao enterro que passava em frente. Sim, diz Bandeira, é com ela que vamos todos, crentes e ateus, um dia prestar as contas. Pessoas seguem suas vidas distraidamente, andando pelas ruas cheias de sol, cheias de orgulho e arrogância, certos de que são alguma coisa.
Que nada. No fim, todos vamos virar um pedaço de nada, um monte de ossos, um nome num papel velho, um borrão numa velha foto em preto e branco ou numa imagem perdida num power-point qualquer, caminhando em silêncio para o centro de nossa perspectiva.   

quarta-feira, 14 de março de 2012

ENTRE FLAMENGO E CORINTHIANS


Um grande sucesso da culinaria inglesa de Devonshire, Leicestershire  e Graciosadebaixoshire:   mussel  with  cassava  flour
Alguém aí estes dias comparou Antonina com o Flamengo: todo mundo gosta, mas nunca dá certo. Mas há também a comparação com o Corinthians: a coisa até que vai, mas sempre mascada, difícil, sofrida, “com muita emoção”. Acompanhei, com interesse, os debates sobre a alteração do plano diretor da Deitada-a-beira-do-mar. Entre as idas e vindas, entendi que a prefeitura ia passando a coisa meio goela abaixo, com o beneplácito da Câmara de Vereadores e que atualmente, há uma ordem judicial impedindo alterações no dito Plano.
Lembro de que, nos anos 80, mais precisamente em 1986, houve a tentativa de instalar uma fabrica de dióxido de Titânio em nossa formosa baia.  De um lado houve quem saudasse a altamente perigosa instalação com a geração de empregos. Do outro, levantou-se um grande clamor popular, que envolveu até os pescadores artesanais, dizendo que Antonina não queria ser uma “Nova Chernobil”. Um grande exagero e uma clara manipulação, por certo. Mas chamou atenção dos meios de comunicação da época: uma cidade em profunda crise econômica que resistia à industrialização tendo como bandeira a defesa do meio ambiente. Bichos raros. Deu no Fantástico e no Globo Repórter, que fez uma bela entrevista com  a querida professora Iza Maria Azim, mãe de meu amigo Zé Paulo, hoje Secretario Municipal de Saúde.
Ou seja, a coisa não vem de hoje. Sempre que um novo estabelecimento industrial bate as portas da cidade, a cidade quer saber sim, o que tem por trás. É bom, é correto e faz bem à saúde. No entanto, é bom que se saiba, esse dilema entre meio ambiente e desenvolvimento é um falso dilema. Eu acredito que pode haver uma solução – e um compromisso – entre os dois termos da equação, que alguns acham incompatível. Acredito firmemente que, entre o ecochato mais chato e o desenvolvimentista mais burro (ou mal intencionado) há um sem-fim de pessoas sensatas que podem trazer solucionática às nossas velhas problemáticas, como diria o nosso filósofo Dadá Maravilha. Ele que, aliás, à frente de seu tempo, sempre combinava a tecnologia do helicóptero com a leveza do beija-flor em seus gols memoráveis.
Podemos fabricar pregos, transportar fertilizantes, lavrar minério de ferro, criar camarões e software, e tudo com impactos ambientais que possam ser minimizados por técnicas adequadas. Basta querer e ter transparência. Se os cidadãos confiam na indústria que tem ao lado de suas casas, e se os gerentes forem responsáveis o suficiente, se tiver uma imprensa séria e responsável, o equilíbrio entre estes interesses poderá trazer bons resultados ao entorno e ao meio ambiente, ainda por cima gerando empregos. Claro que não é um equilíbrio fácil. É coisa dura, o cidadão tem que estar todo o tempo alerta, reclamando, fiscalizando. O poder público, claro está, não pode ser conivente com os interesses privados. Tem que ser convivente com os interesses públicos, pois pra isso foi eleito.
Antonina é um lugar de muitas belezas, que encantam a gente que aí chega. Tem um povo maravilhoso e acolhedor. Tem bons atracadouros, embora os esteja perdendo para o assoreamento da baia há décadas. Mas também tem um sentimento de autocomiseração, que o nosso Paulo “Metido pra cacete” Cequinel, muito apropriadamente comentou esses dias, que é caso pra Freud, pra Jung e pra Pai Zinho de Obatalá, tudo junto e misturado. Antonina não é Parati, a mais bela cidade, nem Santos, o mais movimentado porto, é só a bela e pacata Antonina, que é uma bela cidade à beira mar que tem um porto. Entre a perseguição de Paranaguá e a inveja de Morretes caminha o ego capelista, choroso e lamuriento. Menos, menos.
Tirante isso, tanto a cidade como o povo de Antonina já sabe isso de gerações, que é preciso ter discussão e transparência sobre estas indústrias que chegam. Os industriais, por outro lado, tem que saber também cativar corações e mentes dos eleitores, e não o bolso de prefeitos e vereadores. Ninguém nega um bom projeto, feito com lisura e que todos podem ganhar com isso. Simples, eficaz e eficiente como uma falta batida pelo Paulo Baier, nosso ex-jogador em atividade.
É possível conciliar Meio Ambiente e Desenvolvimento, esse é meu pensamento. Não podemos é nos encastelar em posições inconciliáveis, sem espaço para o dialogo, a discussão e o consenso. Por quem os sinos dobram em Antonina? Espero que pelas futuras gerações, com emprego, renda, e, também qualidade de vida e um meio ambiente equilibrado.    

domingo, 11 de março de 2012

A TRAGÉDIA FAZ UM ANO


O Bairro da Larangeira em março de 2011

Hoje faz um ano da grande catástrofe que nos atingiu. Em meio ao céu azul de Campinas, tento procurar informações sobre a situação do verão. No site do Simepar, vejo que nosso verão 2012 foi controlado pelo fenômeno La Niña, que traz menos chuvas – e a conseqüente estiagem no oeste da região sul, e dias mais quentes sem chuva. E fico mais tranqüilo.
Ficar tranqüilo, entretanto, é o principal problema. Dizem os Japoneses, escaldados que são de grandes desastres naturais, que as tragédias acontecem quando nos esquecemos delas. Na hora em que estamos mais folgados, desprevenidos, arrogantes até – “faz muito tempo isso” – e é exatamente a hora em que volta a acontecer. Portanto, não deveríamos esquecer o 11 de março de 2011.
Por vários motivos. Tais fenômenos são cíclicos. Em 1995, quando trabalhei numa outra grande tragédia em Pirabeiraba (Joinville), eu via os homens de minha idade estupefatos, dizendo nunca terem visto uma chuva nem deslizamentos de terra daquele porte. Atrás deles sempre vinha o Opa, o avozinho, a nos contar uma história, naquele português de colono lá deles: “Em xinquenta e doix teve uma muita piorr que exta!”. Ou seja, havia um certo tempo para a ocorrência de chuvas anormais e grandes deslizamentos de terra, o tempo de algumas gerações até. Mas elas voltam, tão certo quanto o sol todos os dias.
Outro motivo importante para não esquecer o 11 de março: devemos diminuir nossa vulnerabilidade aos desastres. Por exemplo: o terremoto do Haiti foi muito menos intenso que o terremoto do Chile no mesmo ano, mas os custos em vidas foram astronomicamente maiores. Por quê? Por que no Haiti as pessoas vivem mal, tem casas pessimamente construídas e não tem informação de como proceder em caso de tragédia. Como diminuir nossa vulnerabilidade? Tendo um bom mapeamento das áreas de risco, tendo planos de evacuação que funcionem e, principalmente, tendo uma população que tenha mais educação e informação, que more melhor e tenha mais cuidados na hora de escolher o local e os métodos adequados para construção de suas casas.
Revirei os blogs, o meu e os outros, em busca de textos, noticias e tudo o mais. Tem bastante coisa, bastante informação. Confesso que fiquei tenso relembrando todos aqueles momentos, a cidade de joelhos, apavorada, as pessoas correndo pra lá e pra cá, todos se perguntando: e agora?
Naqueles dias, enquanto corria os morros e avaliava as áreas mais atingidas, fui convidado, pelo meu querido amigo Eduardo Bó, para uma conversa com algumas pessoas da cidade. Expus o que estava sendo visto e o que estava sendo feito naquele momento de tragédia. Inclusive, coloquei para todos que o processo de reerguer a cidade seria lento e doloroso, de minha própria experiência em outros casos como este. Anos depois, ainda existiam pessoas desalojadas em Blumenau, por exemplo. As dificuldades seriam grandes.
Nos meses seguintes, tornei a visitar algumas das áreas com meus alunos de Iniciação Científica. A cidade, com razão, ainda olhava o morro com desconfiança. As cicatrizes ainda estavam todas lá. A área da Laranjeira estava como uma cidade fantasma, com casas destruídas, casas demolidas e rapazes vagando aqui e ali. Um cenário ainda de guerra.
Uma das coisas que me lembro foi de um texto publicado no Bacucu com Farinha, onde coloquei a possibilidade de um pacto por Antonina, que fizesse com que o poder público e os cidadãos tentassem refundar a cidade. Refundar no sentido de fazer de novo, e tentar fazer melhor, sem as mazelas que sempre teve. Refundar no sentido de olhar de uma maneira mais atenta para a cidade e para seus habitantes, incorporando um sentido ambiental no processo de desenvolvimento. Uma Antonina com melhor padrão de vida, de educação, de saneamento, com um plano Diretor que contemple os riscos da cidade. Por que não?
2012 é o último ano do calendário maia. Também é ano de eleições municipais. Na blogosfera capelista e seus 40 blogs, parece não haver outro assunto. Leis eleitorais, quem pode e quem não pode ser candidato, e por aí vai. Antonina está precisando de mudanças no Plano Diretor, que contemple um zoneamento da cidade em função das áreas de risco levantadas pela MINEROPAR. Antonina está precisando de mais políticas afirmativas para sua juventude, de educação de melhor qualidade. Antonina precisa de emprego e renda.
Será que os que sonham com a cadeira hoje ocupada por Canduca estão preocupados com isso? 

quarta-feira, 7 de março de 2012

A FUNDAÇÃO DA CIDADE



(nos primeiros tempos do meu blog, publiquei uma historia mais longa, com o subtitulo "sinceridades inveridicas sobre minha aldeia", da qual reproduzo um trecho aqui; este trecho fala sobre os tipos de rua de Antonina, em especial Maneco Cego, verdadeiro terror de minha infância)

Nas ruas é que nos reuníamos para conversar: emitíamos juízos em longos monólogos, incompreensíveis uns para os outros. Nossa fala era primitiva e pouco sóbria - gritávamos, falávamos coisas sem nexo, nos injuriávamos mutuamente. A exageração e o teatral eram constantes, possuindo mesmo até graça e melodia, se graça e melodia então houvessem. Ríamos muito, de praticamente tudo, sem mesmo esperar motivos. Volta e meia, porém, cessava o riso para seguir-se o pranto, quando pranteávamos um passado que ainda não fora inventado. Das janelas das casas, olhos e ouvidos invisíveis nos observavam e escutavam, rindo ou chorando de nossas frouxas histórias.
 Alguns de nós porém, deixavam-se ficar mais tempo nas ruas, agarrando suas histórias com uma tenacidade quase comovente. Estes iam falando, falando e falando, e suas frases iam ficando cada vez menos coerentes. Quando isso acontecia, mais e mais faziam sentido. Dali a pouco tempo, sinais de uma loucura doce eram visíveis, e estes profetas ficavam então vagando pelas ruas e resmungando suas inúteis profecias. Tamanha era sua força que uma estranha lucidez os envolvia, e mesmo as pessoas que riam ou choravam dos ditos do louco o temiam como a uma praga.
Entre eles havia Maneco Cego, o profeta trôpego a cantar com voz de Vicente Celestino velhas canções ainda não compostas. Maneco Cego (Ou Maneco Pato, nunca soubemos ao certo) era um profeta itinerante, sazonal. Passava grandes temporadas entre nós, e, depois, desaparecia outros tempos. Semi-cego, dizia ser nosso rouxinol, narrando um fictício programa de rádio pelas ruas, em que era o locutor, o narrador e o cantor. Bem humorado, seu programa poderia durar o dia todo, caminhando alegre pelas ruas todas da cidade. Quando Maneco estava de mau humor, aprendíamos novos significados para palavrões até então singelos de tão cabeludos.
Tinha as pernas duras e andava com dificuldade, como um grande boneco, um grande pássaro desastrado. Para atravessar a rua, por exemplo, Maneco era metódico. Chegava-se até à beira da calçada e esticava a perna, em movimentos bem duros. Freqüentemente se desequilibrava, e desandava numa pequena corrida, como se praticasse marcha atlética, indo se aprumar lá pelo meio da rua, desengonçadamente. Quando não era atropelado ou xingado por algum motorista, dali Maneco prosseguia sua marcha trôpega no rumo da calçada oposta. Esticava a perna, subia o meio-fio e lá ia se aprumar novamente contra a parede das casas.
De sua cegueira tudo se dizia, e havia mesmo quem duvidasse ou quem o tivesse visto lendo jornal deitado lá no Mercado, ou então olhando atentamente para uma cédula nova que tivesse acabado de ganhar. Tentávamos assustá-lo com berros e gritos à queima-roupa, provocando cenas patéticas. Os moleques saiam rapidamente da fatal distância de seu abraço, com alguns croques resvalando pela cabeça.  Maneco arrumava seu paletó em frangalhos, sacudia o corpanzil desajeitado e, desfiando seus habituais xingamentos, seguia andando em direção à porta do Cinema. Pelo meio da manhã, os urubus também já haviam saído do mercado e voavam em círculos sobre a cidade, cada vez mais alto, aproveitando a corrente de ar ascendente. Depois de comer alguma coisa, qualquer coisa, Maneco dormia. Encostava em qualquer parede de casa, muro, ou debaixo de um marquise e dormia, sossegado. A cidade com seus olhos e janelas atentos viam tudo aquilo e balançavam a cabeça, tristemente. O sol já ia baixo, meio da tarde, Maneco seguia novamente em direção ao Mercado fazer qualquer coisa, ou mesmo nada. Feliz, começava a cantar alto, e era sempre tão bonito e tão triste, que nos esquecíamos de tudo, não tínhamos lar nem amigos, tudo havia terminado. As músicas de Maneco tinham sempre este ar trágico, de abandono e solidão, tão ao nosso jeito de estar no mundo, acariciando nosso vazio de alma. Nestas horas, nos perguntávamos quem havia sido aquele homem de triste figura, parecendo um urubu descarnado. Um pobre coitado? Um milionário que largou tudo e foi viver ao relento por causa de um amor fracassado? Mas tudo isso era de um romantismo tão pobre e rasteiro que não durava sequer uma sessão inteira de O Ébrio. Os urubus iriam embora para seus ninhos, lá no morro, e a noite encontraria Maneco deitado em algum canto, o paletó suarento, olhando ao redor com seus olhos pequenos, o nariz adunco de ave benévola.
Maneco sumia por uns tempos, talvez estivesse longe, por onde andaria então? Pegava o trem e sumia. Onde ia durante estes sumiços? Voltava invariavelmente alegre, murmurando o fim dos tempos. Sua voz potente tomava tons de oráculo, e então ríamos, mesmo sabendo de seu poder. Tentávamos então rir mais alto que sua voz, para que se calasse. Mas era um cabo de guerra desigual, e seu dedo em riste nos prometia infortúnios e desgraças. Alguns perguntavam: por que tal profeta preferia viver ali, sempre a beira do apocalipse, sem qualquer conforto ou absolvição? Nós não tínhamos saídas, estávamos presos dentro de nós mesmos, de nossa angústia, de nosso vazio. Mas Maneco não se importava com isso. Não se importava com nada. E prosseguia entre nós, inabalável.
Não obstante, tínhamos a certeza de estar no melhor dos mundos. Enganávamos a nós mesmos de maneira cruel e  impiedosa, e ríamos de nossas próprias frouxas histórias. Pior, acreditávamos nelas. A beira do apocalipse, sonhávamos com o mundo de nossos avós. Viriam navios, viriam indústrias, viriam turistas. Grandes festas, grandes bailes, Corsos e desfiles, toda uma época de ouro, toda uma época mágica estava voltando, a qualquer desavisado momento. Maneco, ao contrário, nos falava de estranhas tragédias, de pragas e anjos com trombetas, descendo a serra pela estrada velha, gritando e apitando como verdadeiros demônios. Era os nossos demônios, que finalmente tinham nos encontrado, ele explicava. Uma maré de sete anos invadiria as casas, dizia, submergindo a cidade no lodo. Depois de anunciar nosso fim, Maneco esquecia tudo e voltava a transmitir sua rádio, a ser importunado pelos meninos e amaldiçoado pelas donas de casa. Se sumisse, dali a algum tempo apareceria novamente, com uma regularidade que nos convencia de que existia o tempo, a sucessão normal das coisas. Mas, mais uma vez, Maneco estava nos enganando com suas idas e vindas. Nos dias de chuva, ficava sob qualquer marquise, quieto, rodeado por seus haveres, parecendo uma grande ave em seu ninho.

sexta-feira, 2 de março de 2012

MARCHA DA QUARTA FEIRA DE CINZAS

eu de férias na praia de Perobas, RN

Neste exato momento estou escrevendo de São Miguel do Gostoso (RN),  onde vim gostosamente curtir minhas mui merecidas férias. Neste momento são oito da manhã, um vento sacode as folhas dos coqueiros, um ou outro calanguinho aparece correndo na calçada que já começa a ferver. Daqui da varanda da pousada posso até ouvir o mar, e um ou outro som de cidade chega bem distante aos ouvidos. Tudo muito chato.
Depois de quase quinze dias, é a primeira vez que vejo a internet, abro e-mails e estas coisas mundanas. Já estou com vontade de fechar tudo de novo e voltar pra praia. Pelo menos soube que o Profeta do mangue deu com os jegues na agua, e a tal catástrofe na avenida do Samba não aconteceu. Que catástrofe era essa, meu caro profeta? Deus soprou em suas orelhas tão severo vaticínio?  Em pleno domingo de carnaval, na Marquês De Sapucaí da terra de Valle Porto? Ora profeta, vá catar bacupari no mato!
Talvez o que o profeta possa realmente profetizar é que o modelo de carnaval que temos está superado, uma gilete velha no meio de tantos prestobarbas. Não sei quem é que cuida e como cuida dos preparativos da festa de momo. Talvez o carnaval de antonina seja uma coisa tão séria tão séria que deveria ser profissionalizada. Alguém que em março já esteja com a cabeça em fevereiro do outro ano, preocupado com patrocínio, verbas, iluminação, som e outros quetais. O que vale pro Bloco do Beco do Mijo, ou seja, a improvisação e o escracho, não vale pro melhor carnaval do Paraná. Cá entre nós, até suruba tem que ser organizada!
Outra: o carnaval tem que ser bom pra todos: pro folião da cidade, pro que vem de fora, pro comercio.  Que se locupletem todos, como diria o Stanislau Ponte Preta. Todo mundo tem que sair feliz, contando pra todo mundo que o carnaval na terra dos bagrinhos é o melhor do universo – mesmo que não seja. Existe muita gente que acha que Antonina tem o melhor carnaval do mundo, assim como tem gente aqui em São Miguel do Gostoso que acha que as praias daqui são as melhores do mundo. No caso do Gostoso, elas são fantásticas e extraordinárias, mas se ficarem usando sem cuidados com o meio ambiente, vão ficar mais feias que as praias da Normandia depois do dia D. Sabendo usar não vai faltar, como diria a propaganda.
Desta forma, temos e não temos o melhor carnaval do mundo. Tudo passa pela organização, pela criatividade, pelo bom uso dos recursos. É preciso que tudo seja planejado, até mesmo o fim da festa.  Na quarta feira de cinzas, em muitos carnavais, o que restava na cidade, quando não chovia, era um baita fedor de mijo.
Achei interessante a ideia de uma fundação municipal pra gerir a cultura, um dos maiores patrimônios que os bagrinhos tem a oferecer  para a Humanidade. Gerenciar as festas, alocar recursos, e ter o tempo todo só pra isso, com gente que entenda do riscado. Acho difícil de implementar, tem que ver se tem dinheiro pra isso, se tem gente que tope organizar a coisa.  O carnaval é uma festa mundana e democrática, onde todos podem participar. Mas tem que ter dinheiro, organização, regras e tudo o mais.